Um dos filmes mais assistidos da história da Netflix: suspense perturbador vai te mastigar e depois cuspir Divulgação / Netflix

Um dos filmes mais assistidos da história da Netflix: suspense perturbador vai te mastigar e depois cuspir

Uma das antenas mais sensíveis da humanidade, o cinema produz filmes que traduzem tão bem o zeitgeist, o espírito do tempo em que são gerados, que até parecem surgir por meio de algum fenômeno entre o espontâneo e o mágico, pairando acima de nossas cabeças como se apenas à espera de alguma oportunidade para se materializar. Prenhes de uma ideia central aparentemente inconcebível tomando-se a perspectiva cênica, essas histórias gritam a um diretor que lhe enxergue o potencial revolucionário de dizer as coisas mais óbvias de uma maneira para a qual ninguém atentara até o momento. O conceito original de “O Poço” por si só legitimar o belo desempenho do filme de Galder Gaztelu-Urrutia no TIFF, o Festival Internacional de Cinema de Toronto, no Canadá, em setembro de 2019, ano em que foi lançado — embora tenha sido consagrado sob uma classificação cheia de ocultas idiossincrasias (mas nem tanto), sugestivamente denominada Midnight Audience Award, Prêmio da Audiência da Meia-noite. Contrassenso fundamental (e injustiça gritante) para com o longa mais surpreendente daquela edição do evento — e decerto de todo aquele ano —, relegado à apreciação dos espectadores insones e malditos, o mal juízo dos organizadores do TIFF parece ter ignorado alguma coisa muito elementar, tão elementar que apenas os leigos foram capazes de absorver — o que vira e mexe ocorre quanto ao próprio Oscar, aliás.

A narrativa que Gaztelu-Urrutia conduz com mão firme, como o tacho de uma iguaria muito delicada que exige que se tenha a massa em evolução constante, transcorre quase inteiramente dentro de um dispositivo arquitetônico meio futurista, meio camusiano, montado num lugar que ninguém ao certo onde fica — e, como uma espécie de piada pronta para nós, brasileiros, trata-se de um prédio abandonado em Franca, cidade no nordeste de São Paulo. Em 333 pavimentos, essa prisão vertical abriga uma fauna tão diversa que junta no mesmo ambiente estelionatários, assassinos e estupradores, mas também gente como Goreng, que só precisa de um pouco de sossego para ler um livro e de condições que o inspirem a largar o cigarro. O personagem, interpretado com dedicação absoluta e irrestrita por Ivan Massagué, não tarda a se dar conta do grande absurdo do Poço, genuíno atentado à razão sem qualquer fragmento de lógica: o edifício é cortado pela imensa cavidade que abriga uma estrutura larga o bastante para comportar a mesa que sobe e desce conduzindo o banquete que alimenta todos os prisioneiros. Os cativos do térreo são os únicos a poder usufruir do que é servido da forma como os pratos saem da cozinha, em tudo parecida à de um restaurante indicado pelo Guia Michelin. A partir do segundo nível, os detentos têm de se virar com as sobras deixadas pelos comensais do andar inferior. É assim até que o mecanismo e a comida cheguem ao topo. Dispensado dizer em que condições.

No roteiro de David Desola e Pedro Rivero, Goreng começa a história no 48° nível, confinado com Trimagasi, o companheiro com quem divide a cela vivido por Zorion Eguileor, que alerta o novato para a inutilidade de qualquer sublevação, uma vez que o objetivo da experiência é fazer com que todos mudem de andar, e, por conseguinte, de parceiro — ou seja, é melhor se acostumar e não criar laços com quem quer que seja. Mesmo que veja com

bons olhos a possibilidade de se movimentar e dessa forma ter a oportunidade de alterar seu status — uma metáfora evidente sobre a mobilidade social, que neste caso, implica em quanto mais baixo, melhor —, o personagem de Massagué não está assim tão convicto de que não possa fazer nada para que os encarcerados parem de se nutrir dos restos uns dos outros.

Desola, Rivero e Gaztelu-Urrutia talvez tenham julgado a premissa do vaivém dos presos monótona demais e cada sequência de “O Poço” dispõe de enredo próprio, com suas tantas reviravoltas, uma mais dramaturgicamente profunda que a outra, o que compensa a repetição do cenário. A fotografia de Jon D. Dominguez — que mergulha o filme num filtro vermelho-sangue em determinadas cenas, fazendo recrudescer a tensão e o fio dramático da trama a partir da segunda metade da história — é um detalhe técnico poderoso, puxando o olhar do espectador para onde o filme quer seguir. O terror intenso, claustrofóbico, lança a narrativa num rio de sangue margeado por ritmo e suspense em igual proporção, crescentes à medida que o desfecho vai se anunciando.

Com “O Poço”, Galter Gaztelu-Urrutia, longe de requentar ideias de outros filmes, congêneres ou semelhantes, o que faz é burilar sua obra-prima como um fino carpinteiro, até chegar à perfeição de uma alegoria inteligente e ousada, que tanto pode se referir à sociedade de um país qualquer da América Latina, desigual e injusto, como sobre a próprio gênero humano, onde quer que esteja. É da natureza mesma do homem subjugar seu próximo e tirar dele todas as vantagens que encontre. Até um naco a mais de sua carne barata.


Filme: O Poço
Direção: Galter Gaztelu-Urrutia
Ano: 2019
Gêneros: Thriller/Terror
Nota: 10