Joia preciosa, na Netflix, aquecer seu coração e melhorar sua terça-feira instantaneamente   Divulgação / CJ Entertainment

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A forma como os orientais lidam com a passagem do tempo e suas armadilhas talvez seja a grande lição por trás de todo o lirismo juvenil de “Velha é a Vovozinha”, parábola cheia de referências as mais delicadas sobre o perigo que pode ser tomar por inimigo justamente aquele que ninguém vence. A uma análise mais ligeira, parece que o sul-coreano Hwang Dong-hyuk empilha sequências de histórias ora dramáticas, ora quase lúdicas, displicentemente, sem nenhum método, como se a benevolência do público fosse o elemento que daria sentido a cada uma dessas muitas peças soltas. Sim, poucas vezes um filme dependeu tanto da maneira pela qual o espectador o compreende, mas o trabalho de Hwang se sustenta graças a um certo descompromisso com a lógica, que permeia o enredo em boa proporção, sem nunca, todavia, implicar a banalidade do que é apresentado.

Muito antes de se tornar conhecido por idealizar “Round 6” (2021), a série que caiu no gosto do brasileiro ao aludir a temas tão nossos, o diretor de “Velha é a Vovozinha” parecia especialmente afeto a desmembrar as relações goradas entre gente comum, dando ênfase a conflitos intergeracionais que elabora com parcimônia depois de um susto inaugural. Na abertura, uma voz de mulher especula acerca das semelhanças entre as mulheres e as bolas (!), atribuindo um tipo específico desses objetos a uma categoria particular de indivíduos do sexo feminino. A bola de basquete, por exemplo, seria o correspondente à mulher de vinte e poucos anos, vistosa, apta a cruzar a quadra num único lance, marcar três pontos de uma vez e, o principal para Hwang, disputada por vários homens; já a de golfe, pequena e desenxabida, leva horas até chegar a sua meta, consome energias que o jogador sabe não serem fáceis de se repor e, talvez por isso, não raro exagera na força da tacada, fazendo-a ir mais e mais longe. Tudo isso para atacar com discussões sobre etarismo numa sala de aula cheia de adolescentes meio perdidos, completamente amedrontados com a possibilidade de serem velhos um dia. O começo pode não ser dos mais felizes; no entanto, o roteiro de Shin Dong-ik, Hong Yoon-yeong e Dong Hee-seon dobra eventuais impedimentos no absurdo das situações que dissecam conduzindo a narrativa para o realismo natural de um homem e uma mulher idosos desfiando queixas e fazendo revelações um para o outro. Essa sequência, aparentemente tola, faz com que “Velha é a Vovozinha” atinja, enfim, sua essência, dependendo sobremaneira do poder de persuasão de suas protagonistas.

Oh Mal-soon é, para o bem e para o mal, uma mulher de passado, conforme se pode inferir das cenas no restaurante modesto que conseguiu abrir ao cabo de décadas de labuta. Essa figura atormentada, clamando por alguma paz de espírito, torna-se paulatinamente mais perturbadora e estimulante na pele de Moon-hee Na, que lhe confere a proporção exata de dignidade e opróbrio, seu ponto nevrálgico, que Hwang disfarça adicionando a subtrama que menciona o desajuste quanto à própria aparência, solucionado num passe de mágica. Destarte, entra em cena sua versão meio século mais jovem, defendida por Shim Eun-kyung com uma convicção que se espraia para a audiência, e com isso o enredo reacende o argumento da perigosa discrepância que o homem julga invencível, amaldiçoando o tempo em que está vive e levando a pior, exposto de maneira definitiva por Woody Allen em “Meia-Noite em Paris” (2011).

Composição adorável sobre juventude versus velhice, compunção e a dignidade que há em ser mãe, “Velha é a Vovozinha” é uma sátira das mais comoventes sobre o estar no mundo, essa sucessão de caos e alguma serenidade que acaba de uma hora para a outra, sem que tenhamos direito à opinião. Como o homem não sabe mesmo querer, o razoável é tomar a vida em sua natureza selvagem, sem falsas ilusões e sem paixão. Mas é possível?


Filme: Velha é a Vovozinha
Direção: Hwang Dong-hyuk
Ano: 2014
Gêneros: Comédia/Fantasia
Nota: 8/10