Obra-prima subestimada de Ricky Gervais está na Netflix e você não assistiu Divulgação / Entertainment One UK

Obra-prima subestimada de Ricky Gervais está na Netflix e você não assistiu

Se documentários atingem quase sempre apenas públicos muito segmentados — por mais urgentes que sejam os temas sobre que se debruçam —, os mocumentários, narrativas em linguagem documental, mas visivelmente fantasiosos, em que um personagem carismático emula a experiência de um drama real e provoca a estimulante desordem entre vida e ficção, realidade e sonho, deveria passar longe da preferência geral. Deveria. O boca a boca, as bilheterias, a repercussão junto à crítica, tudo converge para que produções como “David Brent: A Vida na Estrada” contornem o preconceito, o menoscabo, a apatia e, claro, o despeito e se estabeleçam como um subgênero cada vez mais autônomo, quiçá até mais expressivo que a fonte de onde brotou. Ricky Gervais foi burilando uma habilidade algo intuitiva de dar voz a homens como o personagem mencionado no título, expondo suas fraquezas, sua melancolia, seus demônios ao passo que consegue igualmente exaltar-lhes a garra, a audácia, fazer com que aquela chama que nunca para de queimar não só arda como brilhe, sensação que a plateia capta e leva consigo para muito além do pouco menos de cem minutos de projeção.

Gervais incorpora (e esse é o verbo mais apropriado) Brent e a partir do número ridículo que usa para apresentar seu personagem, também o público começa a vestir a camisa de seu trabalho de diretor, roteirista e intérprete, capaz de encontrar nuanças inéditas para o astro da comédia de situações de 2005. Aqui, Brent continua tão deslocado quanto antes, mas dando sinais de cansaço transcorrida mais de década e meia da estreia da primeira temporada numa função mecânica e tediosa no escritório que presta-se a um imenso cemitério de vocações e talentos. Antes que as luzes se apaguem de vez e tudo se desvaneça irremediavelmente, decide tomar as providências para sair em turnê com a banda sobre a qual julga ter alguma ascendência, o que se mostra um negócio da China — para os músicos, cujo engajamento diante de sua presença intrusa oscila entre o desconforto e a comiseração; para o chefe, que lhe concede uma quinzena de férias, sendo que apenas quatro dias são assegurados pela contabilidade; e para os donos dos hotéis de beira de estrada onde se hospeda e dos pubs toldados por fumaça nos quais enche a cara, sozinho. “O fracasso não é uma solução”, como diz à doutora Vivienne Keating, a psicoterapeuta que o atende, contradito de imediato pela personagem de Nina Sosanya. Brent só resistiu tanto tempo por ter, inteligentemente, se apoiado em seus escombros.

Da mesma forma que com Sosanya, a supina desenvoltura de Gervais como um sujeito exilado na própria vida só alcança os belos acordes de um tipo sôfrega e demasiadamente humano como Brent porque pode se valer de excelentes parcerias, como a que se dá com Tom Bennett, na pele do melhor amigo Nigel Martin, e Doc Brown encarnando o quase rival Dom Johnson, responsável por uma grata surpresa no desfecho. Quando viver parece mesmo uma espiral de cenas sem nexo algum, é melhor preterir os documentários e ficar com suas versões delirantes, híbrido da vida como ela é e da vida como ela deveria ser. “David Brent: A Vida na Estrada” confirma a regra.


Filme: David Brent: A Vida na Estrada
Direção: Ricky Gervais
Ano: 2016
Gêneros: Comédia/Musical 
Nota: 9/10