Indescritível, filme sobre Pamela Anderson, na Netflix, é uma pequena obra-prima Divulgação / Netflix

Indescritível, filme sobre Pamela Anderson, na Netflix, é uma pequena obra-prima

De quando em quando, os semideuses se cansam do Olimpo de onde observam o resto da pedestre humanidade e resolvem dar uma volta aqui embaixo, experimentando os prazeres e as dores dos simples mortais, sofrendo como eles, encontram aí, talvez, outra natureza de glória. É o que deixa subentendido “Pamela Anderson — Uma História de Amor”, recorte amplo da trajetória de um dos símbolos de como era a televisão nos Estados Unidos cerca de quatro décadas atrás e, principalmente, de como eram os bastidores da televisão num tempo caracterizado por um desprezo solene, ostensivo, revoltante pela dignidade de mulheres como Anderson, conscientes de sua aura de pecado numa América sempre puritana e hipócrita, mas esperta o bastante para safar-se das investidas dos cafajestes que, rejeitados, empenharam-se diligentemente — e num silêncio covarde — para eclipsar sua ascensão, o que, de fato, acabou acontecendo mesmo. Num trabalho de filigranas quanto a reconstituir sua biografada a partir desses cacos úmidos de lágrimas e sangue, Ryan White compõe um relato tão honesto quanto repulsivo, em que a degradação a que alguém se sujeita em nome do que acredita ser sua missão — e da fama, claro, que vem a reboque — ainda é a pedra angular do mundo do espetáculo.

Dizer que Pamela Anderson se desnuda frente às câmeras do diretor pode parecer uma blague um tanto grosseira (além de óbvia), mas é justamente essa a impressão que se tem ao longo de 112 minutos de uma história que está longe do fim. Apesar de certo psicologismo vulgar, White não consegue botar a perder a espontaneidade de Anderson ao interromper fragmentos de reflexão de sua protagonista — junto com a maquiagem, decisão que ela mesma havia tomado, como se assiste no desfecho. Nesse ponto, causa espécie sua obsessão por fitas VHS, aquele objeto totêmico por meio do qual garotos brasileiros dos anos 1980 tomavam pé do trabalho da salva-vidas mais encantadora da costa do Pacífico. Há dezenas delas no escritório da casa confortável, mas sóbria, em que a atriz vive com seu golden retriever, dourado e melancólico como ela. E escusado mencionar que uma fita como aquelas quase arruinou sua vida. Mas ela diz.

White elabora um retrospecto perturbador da vida de Pammy, a garota sempre folgazã, mas a anos-luz de distância da feérica Malibu. Poderia existir qualquer coisa de predestinação no que os astros pudessem ter disposto para Pammy, mas desde muito cedo a menina, a primeira nascida no dia do centenário de Ladysmith, na Colúmbia Britânica, sudoeste do Canadá, a 1° de julho de 1967. Contudo, a infância pobre e turbulenta, durante a qual foi obrigada a presenciar as brigas constantes do pai meio malandro com a mãe, dona de casa e cozinheira na cantina local, trataram logo de jogar um balde de água fria no entusiasmo dela. Como desgraça pouca é bobagem, Anderson revela também, em primeira mão, ter sido molestada por uma babá ao longo de quatro anos, até a morte da mulher, num acidente de carro, “provocado” por Pammy, que invocava a força do pensamento para livrar-se dela.

A mudança para os Estados Unidos remonta a esse lado meio místico, meio rebelde de Anderson, de uma rebeldia natural, orgânica. A estrela de “S.O.S. Malibu” (1989) nunca teve de peitar, com a licença do trocadilho, os pais para ser quem era e até despontar na série idealizada por Michael Berk, sucesso de público e crítica, febre mundial por onze temporadas e hoje cult, morou num quarto-e-sala onde guardava como um tesouro um garfo, uma colher e um prato. Essas histórias são especialmente saborosas e emocionantes para quem enfrentou rigorosamente o mesmo, ainda que celebridades, ainda que em ascensão iminente, estejam sujeitas a imbróglios que nem o mais aguerrido dos homens comuns suporta. Esse é o gancho para que White deslinde o escândalo da fita de sexo que sequestra 80% da narrativa de “Pamela Anderson — Uma História de Amor”, o que “Pam & Tommy” (2022), série da Hulu sobre o tumultuado casamento de Pamela e Tommy Lee, baterista do Mötley Crüe, quer julguemos aceitável ou não, faz bem melhor.

Tira-se conclusões elucidativas sobre essa mulher fascinante a partir do documentário de Ryan White. A primeira é que Pamela Anderson passa longe do estereótipo da loura nascida ontem, como também passava Marylin Monroe (1926-1962), retratada em todas as suas cores em “Blonde” (2022), de Andrew Dominik. Segue-se a esse seu inabalável instinto de sobrevivência, predicado de que Marylin, infelizmente, não dispunha — talvez porque não tenha se tornado mãe, e para concluir, que parece ter ido parar nesse lugar sagrado em que a encarceraram à força. Há muito de artificioso em “Pamela Anderson — Uma História de Amor” — como em todos os documentários sobre estrelas decadentes que tentam voltar ao centro da ribalta, ou ao menos passar a limpo o que a fábrica de moer gente que é a indústria cultural fez delas, e envelhecer com dignidade —, mas quem se importa? Melhor decerto foi seu público ter podido conferir seu desempenho como atriz “séria” em “Chicago”, renascendo das cinzas como uma fênix pop (e na Broadway) com todo aquele jazz.


Filme: Pamela Anderson — Uma História de Amor
Direção: Ryan White
Ano: 2023
Gêneros: Documentário/Biografia
Nota: 9/10