O melhor filme da Netflix em 2022 acabou de estrear e você ainda não assistiu Rodrigo Jardon / Netflix

O melhor filme da Netflix em 2022 acabou de estrear e você ainda não assistiu

Sempre restam em nós as únicas questões capazes de tocar o mais fundo de nossa consciência, as mais íntimas, aquelas que se vão sedimentando nos meandros mais recônditos do espírito, de onde dão azo às dúvidas mais mortificantes, às incertezas mais cruéis, aos dilemas existenciais que atiram-nos num limbo de horror e morte, nos aterrorizando sem pena ao fazer com que abdiquemos de toda a serenidade e abramos uma avenida larga para que desfile a loucura, primeiro silente, em seguida irrequieta e descuidada e verborrágica, nos andrajos cujo brilho engana-nos por muito tempo. Sobram-nos razões para que nos creiamos a espécie mais desventurada da Criação, e o somos mesmo. À deriva entre a razão, salvífica, mas igualmente dotada de seu talento para a ruína, e o desespero, imanente à condição humana, absorvendo-nos para o centro das grandes, das irreversíveis misérias que se cultivam por si mesmas em nossa alma e se alastram, com a nossa ajuda inconfessa, o homem se perde e se encontra e se perde mil outras vezes, sendo o lobo de outros inúmeros homens, mas sendo ainda o lobo de si próprio. Estamos condenados a cometer os mesmos erros pelos séculos dos séculos, até que nos salvem os bárbaros, trazendo algum falso desenlace com que teremos o maior prazer de nos iludir.

Ninguém está a salvo de tornar-se um escravo das próprias lembranças, principalmente nos momentos em que tudo quanto resta é só a felicidade que já não existe mais. Ao longo de toda a vida, cerca-nos o perigo de que passemos ao melancólico estado de arqueólogos de nossa própria vida, cascavilhando nossas miudezas em busca de qualquer coisa que nos faça supor que uma época boa, mas já sepulta há muito, pode reviver por si só ou, contrariando ainda mais a razão, ter uma certeza tão renitente quanto detestável de que seremos nós que vamos tomar um trem mágico para todas as gares das recordações e lá permaneceremos o quanto desejarmos, voltando depois como se nada tivesse havido. Pobre do homem que não se submete ao jugo do tempo; e tanto mais infeliz é o que se presta a ser seu carrasco, tentando impingir-lhe a pena que só a ele mesmo cabe pagar.

Alejandro González Iñárritu parece continuar firme em seu propósito de não mais tolerar as delicadezas cínicas que sustentam o mundo. Em “Bardo, Falsa Crônica de Algumas Verdades”, Iñárritu personifica muitas das neuroses não apenas do gênero humano, mas das Américas, da história do continente americano, da glória e do desajuste de ser artista numa era de violências perpetradas das mais diversas maneiras, das mensagens que condenam, das palavras que matam. El Negro, como é conhecido em Hollywood, já conta cinco Oscars no currículo e este seu trabalho mais recente — pleno de toda a originalidade e de todos os maneirismos pelos quais a Academia costuma se enamorar — parece que vai juntar-se aos outros homenzinhos dourados do mexicano. Com seu 13° filme, o diretor inclina-se a escancarar um pouco mais seu choque frente à ignorância maciça que rege nossos dias, espraiada pelos campos mais insólitos e mais urgentes.

Combinando o lirismo agridoce e niilista de “Biutiful” (2010) às iluminações acerca da pobreza da arte nas sociedades pós-modernas, como o exposto em “Birdman ou (A Inesperada Virtude Da Ignorância)” (2014), e sem deixar de lado as experimentações que bem o caracterizam, caso de “O Regresso” (2015), Iñárritu não tem pudor nenhum de escarafunchar as chagas nunca cicatrizadas dos Estados Unidos. Há em boa parte dos 160 minutos de projeção metáforas sobre o que é ser chicano para além dos domínios do Rio Grande, mas este é um relato pessoal também. Silverio Gacho, o bardo do título, é um alter ego muito bem pesado de El Negro — que incorporou o apelido até como um meio de autoafirmação —, e malgrado juntem-se ao roteiro, de Iñárritu e Nicolás Giacobone uma legião de personagens, Silverio, atuação irretocável de Daniel Giménez Cacho, resume tudo quanto se precisa saber a respeito de El Negro, da vida, de seu cinema. Do mundo e de sua feiura, indizível, mas ainda assim doce. 


Filme: Bardo, Falsa Crônica de Algumas Verdades
Direção: Alejandro González Iñárritu
Ano: 2022
Gêneros: Drama
Nota: 9/10