Filme na Netflix é um retrato perturbador, mas poderoso, de uma parte envergonhada da história Seth F. Johnson / Sobini Films

Filme na Netflix é um retrato perturbador, mas poderoso, de uma parte envergonhada da história

Quanto mais tomamos pé da realidade, mais o mundo se nos revela um lugar especialmente hostil, onde passamos a ser forçados a medir cada palavra e estudar todo gesto, sob pena de arcar com consequências pesadas demais, de perder o sagrado direito de denunciar o pouco que conseguimos absorver da perversidade sem fim que há no mundo. Ninguém pode se dizer a salvo da maldade invencível dos tantos lobos em pele de cordeiro que nos encurralam em circunstâncias entre absurdas e perigosas. A ideia da vida como uma experiência plena, sempre pontuada por episódios conflituosos, mas que se arranjam de modo mais ou menos célere à medida que os rivais encontram um ambiente propício à discussão de conceitos antagônicos que podem se complementar, está, por óbvio, intrinsecamente vinculada à noção e à prática da liberdade. Senhora das angústias mais profundas do homem, de onde emanam-lhe os sonhos mais doces, a liberdade se nos apresenta sob formas as mais variegadas, contemplando justamente o que existe de mais lindo na condição humana, sua pluralidade.

A história é feita de personagens que, por absurdo que pareça, passam ao largo da atenção — e mesmo do interesse — das gerações que as sucedem, por uma pletora de tristes razões. Em nossos dias, por mais problemas que as sociedades tenham quanto a preservar o direito à opinião e à expressão independente, muito já se avançou nessa questão, ainda que o opróbrio dos injustiçados de outros tempos não feneça com decretos ou mesmo com a tomada de consciência de cidadãos da pós-modernidade, e não obstante a ignorância quanto ao relevo e ao legado dessas grandes vultos que a humanidade conseguiu produzir, de quando em quando elas impõem seu mérito e ressurgem, abalando as frágeis estruturas do quase nada que se pôde erigir desde sua passagem pelo mundo. Essa parece ser a maior preocupação de Mark Amin ao dispor-se a traçar o perfil de um dos homens mais honrados que os Estados Unidos já viram. Cheio de reviravoltas, “Herói da Liberdade” (2020) se concentra na bravura mitológica de Shields Green (cf. 1836-1859) a fim de iluminar uma quadra particularmente tenebrosa da América, não de todo superada.

O minucioso roteiro de Amin e Pat Charles esgrime a abordagem extraoficial da escravatura nos Estados Unidos ao longo do século 19 a partir de episódios menos conhecidos, e é precisamente aí que Green entra. O autointitulado Imperador — nome original do filme, aliás — foi um escravizado fugido de Charleston, na Carolina do Sul, que conquistou prestígio na ofensiva dos abolicionistas a Harpers Ferry. A esse propósito, Amin e Charles esclarecem que o ataque a Harpers Ferry, na Virgínia, hoje Virgínia Ocidental, entre 16 e 18 de outubro de 1859, foi uma das maiores batalhas motivadas pela causa dos negros do Sul, o que como se sabe, degringolou na Guerra de Secessão, a Guerra Civil Americana (1861-1865). Cônscio de que o assunto, mais que espinhoso, é mesmo deveras intrincado, o diretor inclui com parcimônia os demais personagens desse enredo, verídico, mas pleno de muitas alegorias — algumas desabridamente exageradas quanto a exaltar o nome de Green, a começar pela opção de empregar sua alcunha, que remeteria a um passado de nobreza na África, o que nunca se comprovou. No que tange à fantasia em si, Dayo Okeniyi tira leite de pedra e faz um excelente trabalho com a pouca literatura acerca de seu personagem, e não totalmente usada por Amin. Okeniyi é hábil em transitar de um hemisfério para o outro de Green, convencendo o público de que, na verdade, o protagonista faz parte de uma categoria muito sui generis de herói, composta por aqueles tipos irritantemente comuns, que encampam uma boa briga pelos motivos mais improváveis e mais íntimos. No momento oportuno, do lado certo da história e rodeado por companheiros tão destemidos e virtuosos quanto ele, Green deu a maior guinada que poderia em seu destino. Mas pagou caro.

Frederick Douglass (1818-1895), considerado o pai do movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos — e responsável por ter apresentado Green ao branco John Brown (1800-1859), o maior abolicionista americano, entra quase clandestinamente na história, só para constar (a propósito, acaba de chegar à praça a autobiografia de Douglass, que recomendo com fervor). Quanto a “Herói da Liberdade”, o filme se presta a um bom prelúdio sobre a controversa vida de Shields Green, que sobreviveu a Harpers Ferry, mas foi julgado, condenado e executado por enforcamento em 16 de dezembro de 1859, por crimes que não cometeu. E por sonhar demais.


Filme: Herói da Liberdade
Direção: Mark Amin
Ano: 2020
Gêneros: Biografia/Drama
Nota: 8/10