Uma surfista ferida em um braço de mar luta contra a fúria de um tubarão branco ao longo de aproximadamente hora e meia. Essa é a história de “Águas Rasas”, que não pôde ser vendido com nenhum nome que fizesse referência ao assassino dos mares, por motivos óbvios. Não há muito mais a acrescentar; contudo, a forma que Jaume Collet-Serra encontrou para dar às cenas escritas por Anthony Jaswinski o teor de angústia e pânico necessários e exatos, primando pelo realismo — são admiráveis tanto a cópia do monstro, que não deixa nada a dever a seu primo mais famoso (talvez até o supere), como as maquetes em que foram rodadas grande parte das sequências, guarnecida de uma piscina a perder de vista. Para que não o pragmatismo não tomasse conta, a produção escolheu uma praia na costa da Austrália — apresentada como mexicana — a fim de conferir ainda mais veracidade ao enredo. Deu certo: a partir do momento em que a fera surge em cena, o espectador também se vê obrigado a enfrentá-la, duvidando de que saia vivo ao fim do combate.
Mas quem escala essa pedreira mesmo é Blake Lively. Nancy Adams, uma ex-estudante de medicina que abandonara o curso, se depara com o tubarão ao visitar a praia do México que sua mãe, recentemente morta devido a um câncer, costumava frequentar. A exposição de fotos da mãe de Nancy, também vivida por Lively, bem como das janelas da videochamada com o pai (Brett Cullen) e Chloe, a irmã doze anos mais nova (Sedona Legge), nem suplementam o público com alguma boa pista sobre um mistério ainda insondável nem servem para, ao contrário, distraí-lo, à guisa de isca falsa, a fim de que se prepare o terreno para novas revelações, ou seja, só poluem a narrativa. Demora um pouco, mas Collet-Serra entende, afinal, que o pulo do gato em “Águas Rasas” é a simplicidade e, claro, a violência.
As peças de publicidade divulgaram “Águas Rasas” como um filme de terror ou um “Tubarão” (1975), de Steven Spielberg, revisitado, modernizado (e resumido), mas a trama tem personalidade própria. A história de 2016, uma das mais aceleradas desde o advento da franquia “Missão: Impossível”, vinte anos antes, é um thriller de vida e de morte. Uma garota à primeira vista frágil se encontra flagrantemente ameaçada pelo mundo selvagem, na figura de uma besta maior que um bote — e muito mais ousada que o vilão spielberguiano, se prestando a dar saltos acrobáticos como Willy, a adorável orquinha de “Free Willy” (1993), dirigido por Simon Wincer, e a se contorcer no rochedo em que a protagonista se refugia (depois de ter feito a carcaça de uma baleia de abrigo), na ânsia de abocanhá-la. Um artista.
A performance de Lively é um show à parte. Percebe-se que seu trabalho só vem à luz depois de muito ensaio, muita preparação, muito treino, o que lhe deixa muito à vontade para encarar os closes indiscretos por que opta o diretor, um toque de luxúria que deriva para a merecida apreciação estética do longa. O quinteto de coadjuvantes que atuam na praia, com destaque para o Carlos de Óscar Jaenada, que conduz Nancy até aquele Éden infernal — indiretamente responsável por seu suplício, portanto —, mas a resgata, alertado pelo filho graças a um detalhe de que o filme de Spielberg nunca poderia ter lançado mão, dá conta do breve recado de que é incumbido, malgrado soe meio preguiçoso da parte de Collet-Serra tê-los feito deslizar sem clemência direto para o estômago do antagonista, não sem antes derramarem muito sangue, claro. “Águas Rasas” é, por paradoxal que possa soar, minimalista, no melhor sentido. Primeiro trabalho integralmente digital em seu portfólio, o diretor usa e abusa do ambiente líquido que grassa na história para brincar com texturas, nuances do brilho do sol se infiltrando na água, o meio tom do oceano em enquadramentos abertos — que casam à perfeição com o verde dos morros que emolduram a praia e escondem a mata cerrada de onde Nancy desembarca — ou abaixo da superfície, produzindo imagens perturbadoramente gráficas. A mistura do vermelho do sangue com o azul do mar, empregada mais de uma vez, assim como a das águas-vivas que subitamente infestam a área, esvoaçam na imaginação por muito tempo.
Contraditoriamente delicado, como ao reservar a um elemento não-humano o respiro cômico-filosófico da história — a exemplo do que fez Robert Zemeckis em “O Náufrago” (2000) —, uma gaivota que a metalinguagem de Collet-Serra chama de Steven, em alusão ao diretor de “Tubarão”, marco do subgênero, o trunfo de “Águas Rasas” é não ter medo de ser mais do que apenas uma história pensada para agradar. É um filme brutal, sim, que se concentra na verdadeira guerra que se torna a relação de uma mulher franzina, mas que, literalmente, segura a onda (mesmo com a perna prestes a gangrenar, depois da mordida descomunal do adversário), contra uma criatura que só deseja aniquilá-la. Um modelo já testado e aprovado, mas que consegue se firmar por seus próprios méritos.
Filme: Águas Rasas
Direção: Jaume Collet-Serra
Ano: 2016
Gênero: Suspense
Nota: 9/10