Faroeste na Netflix para quem não gostou de Ataque dos Cães Dan Power / Universal Pictures

Faroeste na Netflix para quem não gostou de Ataque dos Cães

A relação entre pais e filhos pode ser difícil, em especial quando existe um hiato não só de anos como de intenções entre duas pessoas que se querem bem, mas que optaram por estilos de vida rigorosamente diversos, mesmo antagônicos. Como tempo é um conceito eminentemente subjetivo, nem sempre o passado se torna apenas uma pálida lembrança com as incessantes voltas do globo em torno do Sol e, dessa forma, questões que poderiam ter sido liquidadas no momento adequado restam imorredouras, se estendem indefinidamente e torturam, não só os ofendidos como os próprios ofensores. Lidar com tanto ressentimento, catalisar toda mágoa de modo a transformá-la no combustível pujante que passa a mover uma alma irrequieta e um coração selvagem, mas bondoso, não é para qualquer um. Para tanto, além de um espírito inquebrantável, precisa-se estar disposto a reescrever a própria história, desta vez com as tintas frias da reflexão e da parcimônia, torcendo para que a outra parte admita e valorize o esforço. Com sorte, pode ter sobrado tempo o bastante para zerar o jogo e, quiçá, vislumbrar uma chance de vitória.

Observadas a medida exata das coisas, Donald e Kiefer Sutherland se valem do que viveram juntos para dar a “O Retorno de John Henry”, o faroeste que o canadense Jon Cassar rodou em 2015, o verniz de facticidade que é a essência mesma da história, e não faria sentido algum reunir um pai e um filho para além da ficção sem querer extrair dessa particularidade algum ponto que fosse contar a favor da trama. Cassar desdobra a narrativa sobre o acerto de contas entre um filho marginal e um pai que faz questão de não mascarar seu desgosto a respeito das escolhas pouco ortodoxas de quem deveria, no mínimo, honrar o nome paterno. Donald e Kiefer estiveram juntos diante das câmeras pela primeira vez em “A Volta de Max Dugan” (1983) — e o emprego da ideia de regressão não é casual —, de Herbert Ross (1927-2001), momento em que o Sutherland mais novo não passava de um adolescente.  Desde então, muita água passou por baixo dessa ponte; Kiefer experimentou o sucesso colossal na televisão ao longo da primeira década do século com produções ligeiras a exemplo de “24 Horas”, de Joel Surnow e Robert Cochran, em que deu vida ao atormentado Jack Bauer, um agente do FBI especializado em ações de contraterrorismo, enquanto ia tateando o terreno à cata de boas oportunidades no cinema. Foi precisamente em “24 Horas” que Kiefer e Cassar se conheceram, mas a sorte de apresentar uma performance dramaticamente superior só foi bater-lhe à porta em 2011, por uma única vez, quando conseguiu um papel de menor visibilidade no excelente “Melancolia”, de Lars von Trier. Nesse ínterim e depois, voltou a ter de se defender encarnando os tipos um tanto rasos de sempre, aproveitando para quebrar boates em confusões homéricas sempre que provocado. Por óbvio, o consumo abusivo de álcool e outras drogas também ajudava.

Em “O Retorno de John Henry”, o roteiro de Brad Mirman coloca Kiefer como o personagem-título, um veterano da Guerra Civil Americana (1861-1865) que volta a casa depois da morte da mãe, e isso é tudo o que o texto de Mirman nos faculta saber com precisão. Ao finalmente pisar na cidadezinha perdida em algum lugar do Meio-Oeste de século e meio atrás, encontra o pai, o reverendo Clayton, interpretado por Donald, a remoer velhos e justos rancores, principalmente por saber do jeito como o filho ganha a vida. A fama de pistoleiro de John Henry se alastrara por todo o Velho Oeste, e por mais que ele se mostre disposto a se regenerar, sua reputação e seus fantasmas se encarniçam sobre ele. As ótimas sequências de saloon, em que é enxovalhado pelos capangas de James McCurdy, o grileiro inescrupuloso e frio de Brian Cox, que tenta desapropriar as fazendas da região para construir uma grande estação ferroviária, servem de prólogo ao banho de sangue a que se assiste algum tempo depois, momento em que o protagonista usa seus “conhecimentos profissionais” para fazer algo de pragmaticamente benéfico, ainda que condenável sob a perspectiva moral, pela terra que fora obrigado a abandonar.

O possível envolvimento com Mary-Alice Watson, a namorada que deixou ao partir para a guerra, é tratado com realismo especial. Ótima no papel, ostentando uma beleza madura sem maquiagem e contendo as lágrimas durante a conversa com o ex-pretendente, Moore, cujo desempenho prima mais que somente pela naturalidade, mas é francamente espontâneo, sem defesas, não tem pejo quanto a fazer brotar a acerbidade de Mary-Alice. Num dos diálogos mais emocionalmente complexos da narrativa, a personagem quase se desculpa por não ter podido esperar todo o tempo necessário até que John Henry regressasse e se casado com o posseiro Tom de Greg Ellis, miseravelmente desperdiçado. Em seguida, os dois relembram o episódio sobre uma certa fita vermelha que Mary-Alice teria dado ao personagem de Kiefer, que demonstra um menoscabo presumido pelo assunto; como se vê no desfecho, não só John Henry não se esquecera da tal fita como a guardara, até que vislumbrasse a ocasião em que ele, um durão incorrigível, pudesse restitui-la a sua dona sem nenhum risco de ser traído pela emoção.

A fotografia de Rene Ohashi exalta os tons de dourado da areia em contraste perfeito com a penumbra dos ambientes fechados, mas a cenografia de Erik Gerlund escorrega feio ao exibir composições chapadas, sem perspectiva, bidimensionais, visivelmente construídos para um filme, empanando um pouco o brilho de uma produção tão bem-cuidada. Relato sobre um homem perdido em sua própria vida, “O Retorno de John Henry” é mais uma prova de que o faroeste, o gênero cinematográfico americano por excelência, não se esgota. Sempre haverá de existir um personagem como John Henry para atores como Kiefer Sutherland.


Filme: O Retorno de John Henry
Direção: Jon Cassar
Ano: 2015
Gêneros: Faroeste/Drama
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.