Ser mulher num mundo pensado e construído para homens não deve ser fácil. Admita-se ou não, pulsa em alguma parte recôndita da mente de cada um de nós, mesmo em se tratando do mais liberal dos mortais, o pensamento, contra o qual quase todos lutamos, de classificar uma mulher de acordo com o comprimento da saia que veste, a cor do batom que usa nos lábios, estar ou não acompanhada em determinados lugares, especialmente depois de certas horas. Até aí, drama nenhum, considerando-se a natureza patriarcalista, sexista, machista das sociedades ao redor do mundo, sobretudo a brasileira, e se se consegue empreender um combate exitoso ao monstro do preconceito mais atrasado que habita nosso inconsciente. Uma das questões é saber até que ponto essa fera é capaz de se manter silenciada e sob controle, guardando apenas para si suas opiniões e possíveis comentários preconceituosos. A outra é tentar adivinhar onde estariam as pessoas que não veem nenhum problema em preservar seus piores instintos vivos e ferozes.
“Rust Creek” (2018), da diretora Jennifer McGowan, deu um bem-vindo tranco nos canalhas de plantão ao falar de empoderamento feminino, violência sexual, provincianismo e tráfico de drogas de uma maneira nada vulgar. Refutando os tantos lugares-comuns do gênero, em seu filme McGowan passa longe de assassinos em série à espreita da próxima vítima, litros de sangue que esguicham de jugulares copiosamente, vísceras arrancadas depois de rituais satânicos. Não que ela não seja capaz. O que parece contar para a diretora quanto a optar por uma saída ou outra é a importância do emprego desses recursos em detrimento da narrativa em si mesma, que ela sabe que pode explorar de maneira mais inteligente, o que efetivamente ocorre.
McGowan não precisa de muito para fazer de “Rust Creek” um de seus melhores trabalhos. A história se passa à luz do dia, numa cidadezinha rural do Kentucky, gradualmente dominada pela presença do comércio de opioides. É por onde Sawyer, universitária que persegue uma boa oportunidade de trabalho há algum tempo, tem de passar para chegar a Washington. Um erro do GPS — sempre desconfie dele; deixe seu orgulho de lado e peça informações à moda antiga — a faz se embrenhar no coração de uma floresta, cenário ainda mais hostil devido ao rigor do inverno, que deixa a copa das árvores nuas e o chão tomado de folhas secas, excelente intervenção de Michelle Lawler com sua fotografia em sépia. A mocinha, de uma Hermione Corfield admiravelmente à vontade num personagem de incorporação tão complexa, deixa o bosque, mas fica ilhada, à mercê de Hollister e Buck, os tipos marginais que caem do azul e começam a molestá-la, tudo se encaminhando para um tenebroso episódio de estupro. O que os bandidos interpretados por Micah Hauptman e Daniel R. Hill não supunham é que a garota não é tão indefesa quanto sua aparência frágil faz parecer. A partir desse ponto, McGowan se vale do terror psicológico para deixar subentendido o destino de Sawyer, que luta contra a investida dos agressores até que a floresta se impõe novamente, mas dessa vez a seu favor.
O verdadeiramente saboroso em “Rust Creek” é a habilidade de McGowan em ir adicionando camadas de tensão à história central, com subtramas que, por óbvio, poderiam nunca ser desenvolvidas, conservando-se a primazia do suspense, mas que uma vez encampadas, ao contrário de enfraquecer o argumento original, só fazem com que ele tenha ainda mais importância, quiçá até justificando o conflito que dá mote ao roteiro de Julie Lipson. Desde a primeira reviravolta, resta claro que a personagem de Corfield é quem vai dar as cartas nesse jogo, confirmando a tendência da diretora quanto a assumir perspectivas assumidamente feministas num enredo que evidentemente teria tudo para agradar muito mais aos marmanjos. A casa vai caindo para Hollister e Buck aos poucos, mas sem cessar, num movimento seguro da diretora rumo à mensagem oculta nas entrelinhas. Os candidatos a vilões não chegam aos pés da astúcia da protagonista, que na ânsia de se safar do encalço dos dois, acaba encarando como natural a estranha hospitalidade de Lowell, o fabricante de metanfetamina interpretado por Jay Paulson, com quem passa a bater uma bola redonda até o desfecho explosivo. Primo dos dois perseguidores do início da história, Lowell protege Sawyer da verdadeira obsessão que passam a nutrir pela garota, que por sua vez elabora por ele sintomas de uma síndrome de Estocolmo muito verossímil e aceitável, dada sua vulnerabilidade. É quando também entra no circuito o xerife O’Doyle, de Sean O’Bryan, o grande antagonista da história, fechando o arco de refinada psicopatia a unir os cinco.
Dá gosto assistir a um filme que se pretende panfletário, mas que nunca resvala na militância que se sobrepuja à arte, usando para isso o público e fazendo de bobo o espectador. Cheio das tais águas corrosivas a que alude o título em português, explicadas numa etapa da atividade infralegal de Lowell, “Rust Creek” se presta a mais um alerta às mulheres, incentivando-as a tomar sua cruz e lutar, sem prescindir da história e seus meandros, feito um riacho num lugar ermo. E por mais inofensivo que pareça, nem sempre se conhece o que haverá por baixo de seu leito.
Filme: Rust Creek
Direção: Jennifer McGowan
Ano: 2018
Gêneros: Drama/Suspense/Policial
Nota: 10