‘Indecente’, novo filme da Netflix, baseado em best seller é fiel às origens e comprova que de onde menos se espera é daí mesmo que não sai nada

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A autodenominada literatura de mulherzinha — assim mesmo, no diminutivo — deve muito a Nora Roberts. A autora, sem dúvida um fenômeno de vendas desde que surgiu no mercado editorial, com “Almas em Chamas”, publicado em 1981, abriu as portas para uma porção de outras escritoras que, como ela, dedicam-se sem medo a elaborar narrativas em que figuras femininas e questões referentes ao universo da mulher tomam a cena no melhor dos cenários: rodeadas por histórias em que a mulher se basta. Ignorar Roberts, seus enredos, seus livros, sua trajetória de sucesso é apenas desespero.

Goste-se ou não, esse gênero, digamos, artístico se impôs ao longo das últimas quatro décadas, e segue dando sua bem-vinda colaboração à economia, em especial quando cerca de três bilhões de pessoas ao redor do mundo tiveram de se isolar e passar o tempo de alguma maneira. Nora Roberts e seus congêneres seguiram frequentando listas dos mais vendidos divulgadas em veículos de imprensa de todo o planeta; no caso da americana de Silver Spring, no estado de Maryland, nordeste dos Estados Unidos, os números são mesmo aterradores. A ex-dona-de-casa, mãe de dois filhos, talvez jamais imaginasse chegar à marca suntuosa de quinhentos milhões de exemplares vendidos em mais de duzentos países, mas se pararmos para pensar, sua façanha nem é tão célebre assim.

Visando a atingir esse público, Alyssa Milano viu uma oportunidade de ouro de tirar sua casquinha. Além de estrelar “Indecente”, Milano é a produtora do filme, leia-se a pessoa que faz as coisas acontecerem. E ela foi diligente: cercou-se de profissionais tarimbados, o que inclui um bom elenco e uma diretora que saberia traduzir sua proposta em cinema, e reservou o filé mignon, isto é, o roteiro à própria Nora Roberts. Talvez esperasse também que dessa alquimia aparentemente perfeita surgisse o Santo Graal, um receptáculo à altura de suas pretensões cinematográficas. Fica para a próxima.

Raras vezes se viu na centenária história do cinema um filme tão enfadonho, pretensioso, vulgar, adjetivos que a representação de Milano encarnam à perfeição. A propósito, há uma diferença abissal entre atuar e representar, que os dicionários não explicam bem. Representar, como qualquer bom ator sabe, cheira a canastrice, e essa é uma definição magistral para o trabalho da atriz em “Indecente”, uma das primeiras estreias de 2022. Adaptando seu próprio romance, Nora Roberts, espertamente, ressalta as pretensas qualidades de sua anti-heroína — ou talvez seja só heroína mesmo, sem o prefixo de oposição, dada a chatice sufocante de Grace Miller, uma escritora de romances detetivescos que passa a integrar temporariamente os quadros da inteligência policial depois de uma tragédia na família.

Tudo em “Indecente” é tão exasperantemente repetitivo e sem imaginação que qualquer linha que se dedique quanto a criticar o filme é um elogio — e não é da loucura da diretora, Monika Mitchell, em ter aceitado meter a mão numa cumbuca tão estreita. Sempre que Grace entra em quadro, um só pensamento toma de assalto o espectador, e não é nada lisonjeiro, e quiçá seja essa a única mais próxima de diversão encampada pelo filme. A onipresença de Milano em cena, dramática quando deveria ser cômica, engraçada nos momentos em que deveria se conter, extrapola as raias do vexatório. Admito que conheço da obra de Roberts o mesmo que da de José Sarney, mas é incoerente, para não dizer patético, que uma personagem como a escritora a vende ao público — bonita (há controvérsias), brilhante (idem), família (ibidem) e multimilionária — quase rasteje aos pés de Ed, o investigador vivido por Samuel Page, talvez o único lampejo de dignidade no longa, longuíssimo, de 106 minutos. Grace e Ed se conhecem quando a personagem de Milano volta à cidade natal a fim de rever a irmã, Kathleen, interpretada por Emilie Ullerup, e ajudá-la num problema com o ex-cunhado, de David Lewis. A partir de então, tem início uma relação insossa, desenxabida, em que Grace tem o nível de autoestima já esquadrinhado e Ed, coitado, nunca consegue despachar a mala de uma vez por todas.

Um crime brutal colhe Kathleen, que aproveitava as horas livres do trabalho como professora de teatro do ensino fundamental para faturar algum de um jeito mais fácil e mais instigante, mas nem isso é capaz de tirar o filme do atoleiro. A vaidade oca de Grace a faz acreditar que, por ser uma autora de sucesso, seja capaz de entender o raciocínio perverso de um criminoso — mas eu digo a Nora Roberts que é o contrário: por se julgar inteligente o bastante para sair ilesa do labirinto mental de um indivíduo perturbado é, talvez, se possa fazer boa literatura policial. Que ideia Roberts deve ter da polícia? —, e esse nhenhenhém claro, pega, e nem poderia ser de outra forma. Ed e seu parceiro Ben, de um Malachi Weir que ostenta sua carapinha prateada com uma ousadia invejável, passam a sofrer o assédio constante de Grace, contando com a solidariedade de gênero da capitã Rivera, de Alison Araya, chefe dos dois. Cada enxadada, uma minhoca.

Milano estica a corda o quanto pode e poe na boca de sua personagem palavras como “misoginia” e “patriarcado”, fora de contexto, sacadas do azul, de um modo ignominiosamente vazio e oportunista, pisando com salto agulha na causa que apregoa defender. Com esse expediente, só o que o filme consegue é um estranho menoscabo pelo problema da mulher no século 21, que remonta a, no mínimo, duzentos anos, desde a consolidação do sistema capitalista, entre 1760 e 1840, com a Revolução Industrial. Do alto dos meus quase quarenta anos — eu já nasci velho —, considero um crime hediondo perder tempo com Nora Roberts e suas indecências pseudoliterárias, mas aposto que a autora, de cima de seus milhões de dólares, ganhos com toda a justiça como direitos autorais por “Pecados Sagrados” (1987) e “Série Mortal”, publicada ao longo da última década, deve ser uma socialista fervorosa. O pensamento socialista é um dos grandes mistérios da humanidade, principalmente por certa elite que nunca fez questão de se inteirar a seu respeito. Como Roberts e Grace, seu mal disfarçado alter ego.

Não faço parte da turma de sabidos que diz qualquer livro é melhor que livro nenhum. Por mim, a literatura poderia ter ido até Machado de Assis (1839-1908), no Brasil, e Fiódor Dostoiévski (1821-1881), seu irmão russo, que me daria por muito satisfeito. Instruído por Voltaire (1694-1778), tenho-lhes um profundo respeito, mas sigo pensando que literatura é uma atividade nobre demais, que demanda talentos que nem todos têm. Há de raiar o dia em que todo brasileiro vai conhecer o Bruxo de Cosme Velho, ao menos de nome. E saber que venerar falsos deuses não leva a lugar algum.


Filme: Indecente
Direção: Monika Mitchell
Ano: 2022
Gênero: Suspense/Policial
Nota: 4/10