A amendoeira de Copacabana

A amendoeira de Copacabana

O ofício de cronista exige que prestemos atenção à natureza (mesmo que ela não preste atenção em nós). Isso escreveu Drummond nos anos 50, mas o poeta foi além da observação e, saborosamente, conversou com uma velha amendoeira à frente da sua janela. Superpoderes de poeta. Acredito que o espírito extrovertido da árvore — próprio dos cariocas — tenha contribuído para a fluidez do colóquio. Provecta e espirituosa, a amendoeira explicou que começava a outonear, mas que o tempo andava desorganizado e, com isso, ela ainda trazia um resto de verão, uma antecipação de primavera e uma suspeita de inverno. Ao final, filosofou: outoniza-se com dignidade, meu velho.

Se a vizinha de Drummond sentia o mundo desorganizado nos distantes anos 50, imagino o que ela diria dos tempos atuais. Em março, o planeta saiu dos eixos e depois começou a girar ao contrário. Alguns se acostumaram, outros ainda não. Veraneamos assustados. Outoneamos acuados. Inverneamos ressabiados. Há pouco, começamos a primaverar, meio sem jeito, dançando fora do compasso. Insistimos em ser primaveris autênticos e o máximo que conseguimos é um arremedo de normalidade.

Se tivesse os poderes de Drummond, também gostaria de conversar com a natureza. Eu até tento, mas ela não responde (pelo menos não em uma linguagem inteligível). Outro dia, comentei com a minha jovem pitangueira: Que calor é esse? Ela quedou-se muda e estoica. E era mesmo um calor “de derreter os untos” como diria o Otto Lara Resende. Mantive a contemplação. O jasmim estava vistoso e cheio de florezinhas brancas. Um casal de bem-te-vis fazia piruetas no céu. O poeta tinha razão: a natureza não prestava atenção em nós. Mais do que isso, ela não precisava de nós. Ela era mais competente do que nós para lidar com o mal que nós nos causávamos.

Mas eis que a chuva caiu sobre a terra. Os pingos gordos e afoitos encharcaram as almas desérticas que definhavam, letargicamente, como frutas desidratadas. Escrevi letargicamente e o corretor sugeriu: liturgicamente. Sugestão aceita, meu chapa. Assim, liturgicamente, a chuva poderia ser uma ablução. Um rito de purificação para os pecadores. Será que merecemos a indulgência? Os fiéis acreditam que sim, que sempre haverá chuva. Os racionais dirão que não, que o Universo pode se cansar das nossas transgressões.       

Aprenderemos nós com essa desorganização do mundo, essa noção de tempo perdido, essas estações enviesadas, esse calor que derrete os untos, os ossos e os nervos?  Tomara que sim. O ciclo das estações está se fechando e vem chegando o verão novamente. Precisamos, como a amendoeira de Copacabana, guardar um pouquinho de cada estação para que, no próximo ciclo, comecemos a outonear com dignidade.