Só leia isso se não tiver mais nada pra fazer

Só leia isso se não tiver mais nada pra fazer

Não me queiram mal, não me desentendam, não vão pensar que eu pirei. É que, realmente, hoje estou feliz. E com felicidade se brinca. Sinto-me tão alegre que poderia até lhes escrever um texto fofo e otimista, desses que falam do amor vencendo no final. Afinal, o que seria do mundo se não houvesse o contrapeso de uma rima à altura da dor?

Acreditem: tirei o dia para me dedicar às irrelevâncias. O despertador tocou, eu até que ouvi, confesso, mas fiz questão de perder a hora, e perdi. Já perdi tantas coisas nessa vida. Por exemplo, essa noite um sonho fugiu de mim. É o tipo de situação que sempre me deixa enfurecido. Hoje, não. Vinguei-me. Empatei as perdas dando tempo ao tempo, fazendo-me de desatento com o galopar das horas. Então me atrasei para compromisso algum. Estava decidido: o dia era meu; o dia e todas as insignificâncias que eu desejasse dele.

Quando finalmente escolhi abrir os olhos, eis que me deparo com uma lagartixa grudada no teto, a devorar uma borboleta. Não acudi o inseto que esperneava aflito. Cruzei os braços atrás da cabeça e curti o sacrifício como se fosse um deus mimado, sem o mínimo remorso, a saborear o extermínio de um animal por outro animal, tudo em nome da cadeia alimentar, do direito do mais forte em comer o mais fraco, e coisa e tal. Levantei-me. Fui para o banheiro pensando em triturar bolachas de maisena e jogá-las dentro da enorme xícara dos Beatles, lotada com leite e café, que uma sobrinha me trouxe de Liverpool. Queria tanto conhecer o Cavern Club. Precisava tanto saber por que deixei de comer aquela gosma matinal da minha infância.

Ali no chuveiro cometi uma extravagância. Apesar das campanhas institucionais alertando para a falta de água por conta da longa estiagem, eu assumo que gastei mais que os sessenta litros regulamentares propostos para um banho solitário sem punheta. E, de repente, havia mais animais se metendo na minha vida: eu estanquei paralítico sob o relaxante tufo d’água do chuveiro, lucubrando por que as formigas fugiam de mim pelas gretas dos azulejos. O que será que carregavam nas mandíbulas e que fora surrupiado daquele cubículo particular: cadáveres de espermatozóides decompostos?

Sou viciado em música, em ficar sozinho, em achar que Deus tá de sacanagem, a velha mania de perseguição que imaturo carrego, desde a época que descobri como a morte é exímia em desmanchar prazeres. Então, liguei o rádio e coei o café usando as tradicionais quatro colheres-de-sopa de pó. Enquanto ingeria aquele delicioso grude feito com bolacha e média, cismei de disputar cantoria com um bem-te-vi pousado no muro. Eu assoviava de cá. Ele assoviava de lá. Pensei “não paro com isso nem fodendo: vamos ver só se este passarinho aguenta”, e continuei a soprar até que a ave perdesse a paciência e batesse as asas. Como não sabia voar fora dos pensamentos, calei-me.

Nu como o rei, decidi urinar na grama, as pernas abertas, o corpo inclinado pra frente, as duas mãos espalmadas contra o muro. O quintal e a urina pertenciam-me, fazia deles o que bem entendesse. Persegui com o jato vesical uma centopeia que escapou indignada entre as folhas. Eu sei ser mau com as filigranas. Notei que aquele hábito de mijar sempre no mesmo canto do jardim já deixava a grama deveras amarelada de tanto sal e ureia. Será que — como diz minha filha — eu deveria deixar de ser moleque e abolir aquele hábito horrível? Eu não me dispunha a dilemas. Portanto, fechei o fechecler (putz! há tempos não escrevia esta palavra…) e parti.

O calendário insistia que aquele era um dia útil. Mesmo assim, eu me julgava tão inútil e contente que vazei de casa para fazer certas coisas que habitualmente não faço, como implicar com insetos e me deter numa conversa longa, prolixa e desconexa com o vizinho da casa da direita, aquele velhote decadente, um sujeito que trabalhara no DOI-CODI e que foi um dos mais impiedosos, tarimbados, dedicados e talentosos torturadores a serviço da ditadura militar brasileira, de acordo com a Comissão Nacional da Verdade e com a Dona Odete, vizinha da casa da esquerda, que jamais mente e tem uma filha que é uma beleza. O demente senhor não dizia coisa com coisa. Mesmo assim, só paramos o papo surreal quando a funcionária da casa arrancou o ex-arrancador de unhas da calçada, resmungando que era preciso trocar a sua fralda antes de colocar o feijão pra cozinhar (o miserável achou que ela tinha dito “farda” e sorriu todo cagado). Ora, não há demérito algum em caçoar dos canalhas.

Eu reconheço: dirigia pela pista da esquerda numa velocidade irritante, é verdade, como se não houvesse amanhã, como se não houvesse buzinas, compromissos, contas a pagar, xingamentos a serem gritados. Nenhum comportamento hostil, contudo, mitigaria o meu surpreendente, sumido bom humor. Estacionei num parque, desci do carro e me ocupei — nessa ordem — às seguintes tarefas insignificantes:

Catei lixo por onde andei (uma senhora me ofereceu a ritalina que a filha tomava). Tirei a camisa e me deitei no gramado (alguém discou pro 190). Eu disse “bom dia” para toda criatura que cruzou por mim naquela tarde (um sujeito cismou que eu era gay). Elogiei o policial da esquina (quase fui preso por vadiagem e desacato à autoridade). Declamei um poema do Drummond para operários da prefeitura que furavam uma vala no asfalto (ofereceram-me suas pedras do caminho). Visitei um mestre, um velho professor de medicina aposentado (ele não se lembrou de mim). Telefonei para uma ex-namorada dos tempos da faculdade (“Lamento informar, senhor, mas ela morreu”). Fui ao velório de um estranho (gamei na carpideira com um visgo familiar). Paguei lanche para uma trupe de moradores de rua (ofereceram-me uma vaga sob a marquise). Salvei um suicida no elevado (bateu-me a carteira). Respirei fundo e pulei (fui acordado do sonho por um bem-te-vi que cantava na janela).