O mito de Ulisses e a vida que a quarentena nos rouba

O mito de Ulisses e a vida que a quarentena nos rouba

Na “Ilíada” e na “Odisseia”, de Homero, Ulisses, o Rei de Ítaca, era o guerreiro solerte. Esperto, engenhoso, foi dele a ideia do famoso cavalo de madeira para enganar os troianos com uma suposta rendição grega, o que fez com que os portões da inexpugnável cidade fossem abertos para a invasão aqueia — daí o famoso epíteto: presente de grego.

Mas o verdadeiro ponto de inflexão que, para muitos, resulta das narrativas homéricas não é a solércia de Ulisses, mas o mito do herói que vai à guerra e, a despeito de todas as intempéries sofridas, volta para casa.

É o que James Joyce captou com louvor em “Ulysses”, a sua Odisseia moderna. Leopold Bloom não passou dez anos na guerra, tampouco mais dez tentando voltar; mas nos absorveu mais de mil páginas em 18 horas de um dia perambulando por Dublin, quando, enfim, voltou para casa.

O que me leva à reflexão da vida como a levamos, desde sempre: saímos de casa, a trabalho, para os estudos, ou mesmo a lazer, mas o que mais nos conforta, ao final do dia, é saber que o lar nos espera. Com todas as suas virtudes e defeitos, como as almofadas quentinhas do sofá e a pia vazando.

É claro: também nos agrada que nossas Penélopes estejam em perfeita harmonia por sobre o tapete que tecem durante o dia e, à noite, destecem, porque, a exemplo da esposa de Ulisses — que enganava os pretendentes ao trono do herói ausente com essa artimanha (dizia que, quando o tapete finalmente ficasse pronto, escolheria algum deles) — a vida nos leva a esse eterno círculo de fazer e desfazer, doar almofadas velhas e comprar novas, consertar pias e descobrir novos vazamentos.

Ou podemos também nos regozijar com infiéis Mollyblooms, porque, talvez — veja bem: talvez — uma das mensagens que Joyce quisesse passar fosse a de não julgar a moralidade alheia.

Tergiverso, porém. Não é esse o ponto a que quero chegar. A ideia aqui é evocar a curiosa assimetria entre o Ulisses que volta para casa com os Antônios e Robertos que, nesses tempos pandêmicos, não voltam, porque, afinal, nem foram à guerra.

É estranho, mas ao mesmo tempo reconfortante, ter o prazer de sair de casa para, ao fim, ter o prazer maior de voltar. Sem nenhum ranço ideológico em relação às medidas de isolamento social para a contenção da pandemia — concordo com elas, apesar da deficiência de serotonina indicar o contrário — mas o fato é que temos, sim, a necessidade de sair, deambular pelas ruas, travar nossas guerras pessoais, derrubar muros de Troia e, ao final do dia, voltarmos para Penélope.

Desde que a humanidade deixou de ser uma massa de nômades pela Terra, fincamos estacas em nossas pequenas nações residenciais. A porta da rua é um passaporte para a liberdade, a exploração e a conquista. E, diferente de Agamenon, nem precisamos sacrificar nossas Ifigênias para ter acesso a esse mundo. O vento lá fora é garantido.

O confinamento nos tirou esse prazer e, consequentemente, o prazer maior do retorno. Sempre em casa, não há a noção de ausência, tampouco da necessidade do retorno ao ponto de partida. Como disse Heráclito de Éfeso, “É a doença que torna a saúde agradável e boa.” Se subtraímos a ideia de pertencimento à vida de atribulações da rua, desaparece a referência que transforma em bálsamo a quietude do lar.

Por isso, enfim, ainda que sejamos como os guerreiros das Mulheres de Atenas, eternizadas por Chico Buarque, mesmo que, quando nos entupimos de vinho, busquemos o carinho de outras falenas, no fim da noite, aos pedaços, quase sempre queremos voltar para os braços de nossas pequenas Helenas.