De tão besta, esta crônica vai ficar sem título

De tão besta, esta crônica vai ficar sem título

O frisson que aquela mulher provocou nos homens durante a festa de aniversário do Toninho até hoje reverbera no sono e na sina de um quarteto de marmanjos claudicantes à beira da andropausa. Pensem numa mulher tão bonita de fazer gaguejar, de fazer perder a fala, de fazer inflar o falo, de fazer latir um fila, cuja nuca com tez de pêssego levava tatuada a seguinte recomendação em letras cursivas, garrafais: “Sonhe”.

Ora, os sonhos vêm boiando em garrafas. Assim mesmo, do nada. Portanto, praquele quarteto de amigos do peito, o verbo era muito mais que um pedido. Tanto assim que os quatro não fizeram outra coisa àquela noite senão sonharem de quatro e fantasiarem ser o chapéu que cobriria a cabeça daquela caetana gata extraordinária a balançar confiante feito um Titanic, ao som de “You can leave your hat on”, na voz rouca do Joe Cocker.

Desespero de náufragos: “Pelo amor de Deus, quem é aquela criatura?”, eles queriam saber, mas Deus não lhes deu ouvidos. Acontece que a matilha de cinquentões experimentados — eles estudaram juntos desde o colégio das freiras monossilábicas, um período da vida em que sopitavam testosterona pelos olhos e competiam campeonatos de punheta em série dentro dos vestiários, na hora do recreio, inspirados principalmente no corpinho disfarçado da Irmã Valentina que, na opinião da maioria, nunca na vida deveria ter escolhido ser freira — pareciam afetados ao extremo.

Tanto assim que a morena de calendário, mesmo sendo uma estranha, foi gentilmente aceita à mesa, sob a mais honesta polidez das esposas, quando ela se aproximou e quis saber se aquela cadeira estaria ocupada por alguém. “Sente-se, queridinha”, elas consentiram, quem sabe, igualmente impressionadas, rendidas à beleza ímpar da moça cujas longas pernas lembravam as torres gêmeas antes de serem estraçalhadas por Osama Bin Laden. Não sei: penso que elas permitiram a companhia da moça por pura misericórdia aos maridos. Coisas assim acontecem. Mulheres não são tão más quanto se imagina.

Além de porres lamentáveis seguidos de vômitos incoercíveis, a noite reservava fortes emoções. Era o aniversário de 50 anos do Toninho, que muitos pensavam fosse um sujeito mulherengo e pegador à beça, mas que acabara de anunciar ao microfone, em alto e bom som, que finalmente chegara o momento de assumir a sua homossexualidade, e gostaria muito de aproveitar a festança, a presença dos pais, dos filhos, e de uma madrinha sua que veio do Espírito Santo, dos parentes, dos agregados, dos colunistas sociais efeminados, dos amigos, da ex-esposa e do seu casal de filhos, para apresentar-lhes Castor, o amor da sua vida.

Mesmo estupefatos com a rima reveladora — duas ou três velhotas capotaram de uísque e síncope, lá no fundo do salão, dando o maior trabalho aos coitados dos garçons — os convidados até que receberam a novidade com alguma graça. De volta à resenha por conta da morena de interromper funeral, as opiniões dentro do quarteto dividiam-se feito tanga.

O Galdino Gameta — que era o mais ignorante deles, um machista extremado especialista em menosprezo e trairagem — afirmou que não queria nem saber se a moça era solteira, ou se a moça era casada: derrubaria a danada numa cama do mesmo jeito, mais rápido que uma operadora telefônica, ou seja, num prazo inferior a setenta e duas horas, pois uma mulher estupenda como aquela não se desperdiçava de jeito nenhum.

Catatau estava visivelmente embaraçado ao confessar que sentira também uma certa cócega interior, uma consistente atração pela moça, aquele desejo íntimo deveras desagradável como uma pedra nos rins, pois ele estava fechado, até as últimas consequências, com os rigorosos dogmas e desígnios da sua igreja. Mesmo assim, naquela noite, esperou a mulher cair no sono para se acabar no primitivo (mas, reconfortante) cinco contra um que há tempos não experimentava, desde os bancos da escola, uma época áurea da vida em que batia recorde em cima de recorde. Sem exagero, em matéria de masturbação em série, o Catatau era uma besta humana, um mistério da ciência, um ídolo da molecada tresloucada de tanto hormônio no sangue.

Azor disse que tinha um azar danado quando traía a esposa, que era um verdadeiro desastre, pois não sabia mentir direito. No seu ponto de vista, alguma coisa sempre sairia errada, como aquela vez em que quase morreu de susto quando uma colega sua de repartição sofreu uma crise convulsiva dentro da banheira de hidromassagem do motel e vomitou todo aquele extrato de picanha mal passada misturada com pílula do dia seguinte.

O Fausto era uma espécie de poeta metido à intelectual, mas, ele tinha alma de artista, e resumiu todo o furor escrotal do quarteto num verso de samba: “São demais os perigos dessa vida pra quem tem paixão”. Mais inspirado que um pastor bêbado em pregação de velório, ele completou, como se quisesse tirar os companheiros da disputa, ao debulhar o terror nas entrelinhas: “Com mulher bonita, desimpedida e inteligente não se brinca, rapaziada”.

A festa já ia tarde, caminhava para a cantoria do “Parabéns pra você nesta data querida”, do “Com quem será que o Toninho vai casar” e tudo o mais, porém, o mistério acerca da beldade sedutora — quem era, se estava ou não acompanhada na festa, de qual jardim teria fugido, e outras besteiras do tipo — incomodava tanto ou mais que o repertório desatualizado do DJ Opala que, assim como eles, era um amigo remanescente do colégio das freiras monossilábicas, um amante da música que parecia ter sido enferrujado juntamente com as suas fitas k7 de ferro, nos anos de 1983.

Mal o Toninho terminou de dar um selinho nos lábios do companheiro, ainda sob os apupos calorosos dos convidados sóbrios (àquela altura da festa, já havia uma leva considerável de bêbados inconvenientes reclamando que a cerveja estava quente, que a comida estava fria, que o som estava alto, e que a revelação do aniversariante era uma puta baixaria), uma mulher que, assim como eles, devia contar uns cinquenta e poucos anos, aproximou-se da musa coletiva e, sem cerimônia nem segredo, abarcou-lhe a cintura de pilão e desferiu na sua boca cor de alcatra um beijo de língua que deixou à míngua os quatro amigos. “Isso aqui está saindo bem melhor que o beijo gay da novela das oito”, comentou uma das esposas, ao notar o quanto os rapazes murcharam feito pênis na entressafra.

Alvejados em pleno voo, eles ficaram cabisbaixos e, como cantaria Belchior, sentiram-se mais angustiados que um goleiro na hora do gol, uma vez que, em maior ou menor intensidade, a moça já tinha entrado neles, como o sol num quintal. Ora, que o Toninho levava jeito, eles até já tinham desconfiado. Mas, aquela moça, não. Aí já era demais pruma noite só.