Guimarães Rosa tinha razão: viver é um rasgar-se e remendar-se

Guimarães Rosa tinha razão: viver é um rasgar-se e remendar-se

Cinco da manhã. Eu trabalhava havia quase 24 horas no plantão do Pronto-Socorro Municipal. Passagens de ano sempre foram agitadas, com rojões que queimam mãos, festeiros que bebem demais e doenças imprevisíveis. Tudo que eu queria era ir embora e dormir no primeiro dia do ano para acordar bem tarde. Queria esquecer os vômitos, suturas e ataduras das últimas e intermináveis horas. Também queria esquecer o término recente de namoro e a distância da família. Só mais alguns minutos e estaria livre. Mas, quase no final daquele plantão de Réveillon, percebi a equipe de enfermagem inquieta.

— O que houve? — Perguntei.

— Chegou uma paciente com câncer terminal — respondeu o enfermeiro. — A mulher não está mais aguentando de dor.

Enquanto eu caminhava para o box onde a paciente estava, o enfermeiro me avisou que ela estava acompanhada dos filhos. Naquele pequeno trajeto, que durou poucos segundos, lembrei-me do meu avô que tinha morrido de câncer em um quarto de hospital, e pensei no meu pai e meus tios que ficaram ao lado dele até o fim. Achei que veria uma cena parecida, suspirei e abri a cortina do box. Engoli em seco para criar coragem.

Andei até aquela jovem mãe, que não tinha mais de 35 anos. Fragilizada pela doença, de olhar fundo e desamparado, ela estava rodeada por quatro crianças, cujos olhinhos exibiam, sem vergonha alguma, pavor e tristeza: parecia que elas me imploravam, silenciosamente, para salvar a mãe delas.

Eu não estava sozinha. Tinha os funcionários que trabalhavam comigo e os doentes de quem eu cuidava; as pessoas na recepção; meus familiares e amigos que me enviavam mensagens de Feliz Ano Novo no celular. Eu não estava sozinha, mas, dentro de mim, havia um buraco enorme. Devia ser o mesmo abismo que recebia aquela mãe que morria de câncer e não sabia o que seria dos seus meninos. Devia ser o mesmo precipício para onde pulam todas as angústias da alma.

O pronto-socorro é um lugar lotado de gente, dor e melancolia. A nossa vida é tão imprevisível quanto um plantão médico: nunca saberemos o que entrará por aquela porta. Mas, certo dia, entram uma mãe morrendo e suas quatro crianças, e ela lhe pede um remédio forte: “É para acalmar o sofrimento dos meus filhos”. A mulher queria dormir. Dormindo, ela não sentiria mais dor e os filhos não sentiriam a dor dela.

Cada história tem um tipo e tamanho de solidão. Pode ser saudade, espera, dúvida ou culpa. Pode ser ausência, perda, dívida ou morte. Mas, às vezes, a solidão é severa com aqueles que querem se ver livres dela. Quase 15 anos se passaram desde aquele plantão e ainda penso naquelas crianças, o que estarão fazendo hoje e como viveram suas vidas. O jardim da minha imaginação tenta florescer uma resposta.

A vida é um paradoxo; ela caminha na linha tênue entre sonho e realidade. Deve ser por isso que escrevo: para não enlouquecer. Cada história a ser contada pode preencher um vazio que ficou para trás; cada lembrança revivida pode dar algum significado às coisas sem sentido. É como encontrar o “soluço sem lágrimas” e as “flores quase sem perfume” de Manuel Bandeira. É como sentir paz em meio à lamúria dos doentes no corredor frio de um pronto-socorro.