O amor não acaba de repente, ele vai morrendo na poeira invisível do cotidiano

O amor não acaba de repente, ele vai morrendo na poeira invisível do cotidiano

Ele, 92 anos. Ela, 89. Quando os conheci, estavam casados havia 70 anos. Enquanto conversava com o casal, reparei no carinho e na cumplicidade que existia entre os dois. Perguntei qual era o segredo daquela união duradoura; o homem, que sorria com os olhos, me respondeu sem cogitar: amor.

Quando se inicia um romance, tudo é novidade. O beijo delicado e o beijo lascivo; o contato com a pele e com a alma; as noites bem dormidas e as madrugadas em claro compartilhadas. Quando se inicia um romance, não se pensa em quando ele irá terminar. Faz-se urgente viver — eternamente — cada instante. Não importa ao casal perder a noção da hora: eles chegam atrasados ao trabalho com sorrisos de iluminar o quarteirão. Um finge que não vê a bagunça que o outro faz. As declarações de afeto são diárias quando se inicia um romance.

Paulo Mendes Campos tem uma crônica intitulada “O amor acaba”. Com seu lirismo hipnótico, o autor nos mostra o fim do amor em vários momentos da vida. Percebemos que não é no término do relacionamento que o amor acaba, mas antes: “acaba o amor no desenlace das mãos no cinema, como tentáculos saciados, e elas se movimentam no escuro como dois polvos de solidão”. O amor acaba quando os amantes não sabem lidar com a monótona e invisível rotina cotidiana: “o amor acaba na poeira que vertem os crepúsculos, caindo imperceptível no beijo de ir e vir”.

O amor também acaba antes de um relacionamento mal começar. A ternura do início vai se definhando perante demonstrações de egoísmo e individualidade; nas mensagens por WhatsApp e no pouco tempo disponível; ou no medo de amar. O amor vive acabando “na floração excessiva da primavera; no abuso do verão; na dissonância do outono; no conforto do inverno”.

O amor é assim, delicioso e dolorosamente imprevisível, como chama que nos conforta e depois queima por dentro. Amor é esperar a vida toda pela pessoa amada, como o abraço do reencontro envolto por lágrimas de saudade.

Sobre os idosos do início do texto: pelas histórias que me contaram, pareceu-me que viviam um matrimônio alicerçado em tolerância, parceria e admiração, os alimentos do amor. “Ela me enchia a paciência porque eu esquecia a toalha molhada em cima da cama, mas eu achava lindo o jeito delicado e gentil com que ela esbravejava comigo”, ele diz. “Até hoje você esquece a toalha molhada em cima da cama, meu bem”, ela afirma, enquanto sorri e acaricia as mãos nodosas dele. Drummond procurou o sentido de por que “nascemos para amar, se vamos morrer”. O olhar do amor na velhice pode responder a esta questão.

Mas ainda restam outras suspeitas sobre o mistério do amor: se ele começa na melancolia dos dias incertos e disfarçados de esperança; se ele acaba para recomeçar em todos os lugares e a qualquer tempo; se ele se fortalece com as derrotas; se morre com a indiferença; ou se o amor não é uma opção para quem deseja amar, mas sim uma questão de sorte.