A despedida de Stanley Kubrick está no Prime Video: drama, desejo e mistério em Nova York Divulgação / Warner Bros.

A despedida de Stanley Kubrick está no Prime Video: drama, desejo e mistério em Nova York

O cinema de Stanley Kubrick (1928-1999) é uma anatomia do desejo, do poder e da culpa, três forças entrelaçadas em sua visão sombria do homem. “Em De Olhos Bem Fechados”, Kubrick urde um tratado sobre a hipocrisia das relações amorosas e o fraco do gênero humano pela luxúria. Aqui, o prazer é eivado de hipocrisia, com personagens diante de um ideal de pureza que não poderão alcançar nunca. No filme com que despede-se do cinema e da vida, o diretor constrói um universo de prisões, metafóricas e concretas, observando o pecado com lupa e, ao fazê-lo, chega aos recônditos mais imundos da alma humana. Kubrick e o corroteirista Frederic Raphael tomam por inspiração “Traumnovelle” (“contos de fantasias”, em tradução livre; 1926), do médico e escritor Arthur Schnitzler (1862-1931), recheando a pena do austríaco de cor e movimento, como se quisessem mesmo que nos sentíssemos num baile satânico. Absorver a lição de tal esforço requer tempo.

Kubrick não vê o erotismo como festa, mas como o fluido que azeita a engrenagem das relações, frio e mecânico. O sexo aqui não liberta, mas controla e subjuga, e nesta alegoria sobre a fragilidade dos apetites carnais e os prazeres reprimidos que apodrecem e envenenam, o cineasta adverte para as arapucas do livre-arbítrio. Há em cada sequência um ritmo hipnótico, marcado pela trilha sonora de Jocelyn Pook, que amplia a ideia de fusão entre o sonho e a vigília. Sentimentos ambíguos assolam Bill Harford, arquétipo do homem racional que resiste em aceitar sua humanidade. Bill é atropelado por suas próprias emoções, emoções que sua urgência por método e respostas não deixam-no compreender, e durante duas noites vaga pelas ruas de Nova York, depois de ouvir a confissão da esposa, Alice, que deflagra todo o processo e em torno da qual move-se o eixo do filme. Ele não consegue parceiras para um momento de intercurso sexual, mas continua lá.

Antes, no prólogo, Bill e Alice são mostrados numa recepção de gala na casa de Victor Ziegler, o milionário interpretado por Sydney Pollack (1934-2008). Ela flerta com um húngaro charmoso que lhe fala sobre os poemas de amor de Ovídio (43 a.C.-18 d.C.), enquanto o médico Bill é disputado por duas ninfas, até ser chamado para socorrer uma prostituta que abusara da cocaína. Quando a confusão toda se resolve, Bill reconhece um colega dos tempos de faculdade sentado ao piano que anima o convescote, eles trocam amenidades e o rega-bofe nababesco se encerra. O segredo que Alice decide revelar catalisa a insana busca do marido pelo que ele não é capaz de nomear — ou é, mas para isso tem de vencer a briga com seu inconsciente —, e Kubrick vai, enfim, chegando ao ponto. A seita dionisíaca em que penetra, uma das imagens mais emblemáticas do cinema, é só um pretexto para que o diretor esfregue-nos no rosto nossos pudores e nossa covardia, em cenas de nudez e sexo que, ironicamente, foram submetidas a tratamento digital para suavizar genitálias. Tom Cruise opta por uma atuação cartesiana, quase gélida, a fim de ressaltar o temperamento de falso puritano de Bill, ao passo que Nicole Kidman é a própria Madame Bovary rediviva, dissimulada e inconsequente. Kubrick faz cada vez mais falta, como Hitchcock e Lumet, e no entanto seguem atuais e eternos. Como todo clássico, “Em De Olhos Bem Fechados” fica ainda melhor com o tempo.

Filme: De Olhos Bem Fechados
Diretor: Stanley Kubrick
Ano: 1999
Gênero: Mistério/Thriller
Avaliação: 10/10 1 1
★★★★★★★★★★
Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.