Há filmes avessos a rótulos, e é precisamente esse o caso de “Pecadores”. O novo trabalho de Ryan Coogler rejeita boa parte das expectativas que se queira ter a seu respeito ao fundir drama de época, horror gótico e musical para contar uma história de resistência, de luta, tudo muito bem temperado por ironia e dispondo de apuro estético irretocável. A saga de dois irmãos pretos veteranos da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) que em 1932 voltam ao Delta do Mississípi determinados a abrir um espaço de socialização para negros parece um romance de formação à James Baldwin (1924-1987) ou Toni Morrison (1931-2019), fixando-se na relação entre os gêmeos Smoke e Stack Moore ao longo do terço inicial do longa. Findo esse vasto e enganoso prólogo, o texto de Coogler passa a um horror formulaico, com vampiros brancos e caipiras, cruéis, a encarnar a ameaça sórdida do racismo. O diretor-roteirista é hábil em sustentar esses dois tempos narrativos, ainda que sob pena de ofender suscetibilidades. E sem prejuízo da lógica.
Smoke e Stack vestem-se como os gângsteres de Chicago, onde levantaram uma fortuna com toda sorte de contravenções, e agora correm contra o relógio para abrir seu novo negócio, com malas de dinheiro vivo e caixas da cerveja irlandesa mais cara. Sua primeira aquisição é o primo Sammie, filho de Jedidiah, um reverendo batista que tem com a música uma relação quase religiosa. Desse ponto em diante, Coogler vai tecendo uma crítica sociológica contundente, capaz de desvelar a hipocrisia da segregação racial, que tolera afrodescendentes desde que endinheirados — talvez fosse isso que ele quis ter feito mais explicitamente em “Pantera Negra: Wakanda para Sempre” (2022) e não pôde. Agora, o cineasta recupera o tempo perdido, espalhando nos diálogos dos gêmeos, vividos por Michael B. Jordan, uma defesa leve e muito bem-humorada da identidade étnica do filme, papel que Miles Caton também desempenha, alguns tons abaixo.
Quando convencem Delta Slim, um velho bluesman alcoólatra, a deixar seu posto no cabaré mais tradicional do lugarejo e ir com eles, em troca de um cachê algumas vezes mais polpudo e todas as garrafas que puder enxugar, “Pecadores” começa a entrar em sua fase mais feérica, com o admirável desfile de tipos humanos a exemplo de Annie, a feiticeira de hudu de Wunmi Mosaku, a cozinheira do novo empreendimento dos Moore; o casal Grace e Bo Chow, personagens de Li Jun Li e Yao, na gerência do bar, e Broa de Milho, o porteiro interpretado por Omar Benson Miller.
No interior daquele galpão de madeira, adquirido de um dos próceres da Ku Klux Klan semanas antes, a humilde freguesia experimenta uma sensação de liberdade e refúgio, até que o conflito que serve de justificativa para o argumento central eclode. Remmick, um lavrador de ascendência irlandesa que mora ali perto, consegue invadir o baile e então a fotografia de Autumn Durald Arkapaw e a trilha sonora de Ludwig Göransson transformam o encanto brejeiro da festa num massacre, que culminam em paranoias e agressões entre o hoste mais vulnerável. Jack O’Connell rouba a cena, o que poderia dar margem a considerações indelicadas, não fossem o carisma de Mosaku e o talento de Delroy Lindo. Também há lugar para um amor maldito, mas nem precisava. O caos grandiloquente criado por Coogler sufoca qualquer clichê mais insinuante.
★★★★★★★★★★