Autor: André J. Gomes

Canção das coisas que dormem lá fora e acordam aqui dentro

Canção das coisas que dormem lá fora e acordam aqui dentro

Tem um galo cantando lá longe. Ele canta baixinho, tranquilo, seu canto de quem agradece a Deus pelo céu azul imenso de nuvens brancas varridas que vem aí, sob o sol alaranjado da alegria, esquentando o vento que varre das casas as angústias de ontem, que seca as roupas e renova a vida. Tem um galo cantando. Ele canta lindo, profundo, comovido, para a mulher que em algum lugar dança sozinha de olhos fechados, pés descalços, mãos abertas e coração transbordando música e lembranças.

Nós e nossa sublime alegria de não saber

Nós e nossa sublime alegria de não saber

A menina que hoje brinca com a comida e as próprias meias não sabe, mas ela sorri quando olha na claridade as partículas de poeira flutuando, brilhantes como estrelas caseiras, enquanto sua mãe passa uma vassoura na sala. Não sabe que a saudade corriqueira que tem do pai durante o dia é um sentimento que só vai aumentar com o tempo, o nariz e as orelhas de cada um. Ela não sabe que um dia vai ter saudade do que já foi, do que ainda é e até do que — quem sabe? — um dia poderá ser.

Um dia o mundo há de acordar nas mãos de uma criança que dorme

Um dia o mundo há de acordar nas mãos de uma criança que dorme

O estadista sobe ao plenário de um importante encontro de líderes mundiais com um nó na garganta. Um instante atrás, antes de deixar sua casa rumo à rodada de negociações repleta de homens e pautas que definirão a sorte de milhões de pessoas sem rosto e sem nome, ele tinha visto seu filho pequeno dormindo. A lembrança de sua cria descansando segura, tranquila, alimentada e aquecida ocupara sua cabeça durante todo o percurso até o auditório onde a imprensa internacional se acotovela ansiosa.

Canto de gratidão àquele que parte e de boas-vindas àquela que chega

Ele, o velho pássaro negro que passara a vida preso na gaiola apertada de uma varanda ridícula olhando a vida lá fora, do alto de sua casa minúscula, suspensa e entupida de papéis e sombras, roupas e móveis, sonhos e esperanças, achados e perdidos. Ele agora está livre de olhar o mundo de dentro das suas grades. Livre para estar com aqueles que caminham lá embaixo. Livre para esperar a menina de Aquário que vive em outra terra. Ele agora está livre. Fly, blackbird. Fly.

Cuidado. Aquele que lhe puxa o saco quer mesmo é puxar-lhe o tapete

Cuidado. Aquele que lhe puxa o saco quer mesmo é puxar-lhe o tapete

Incapaz de um raciocínio mais complexo que contar os minutos para a hora da próxima refeição, ele nem desconfia de que pertence a uma espécie ordinária, a mais danosa entre todas as pragas que hoje assolam o mundo, mais daninha que o gafanhoto, a traça, o cupim, o spam ou as duplas sertanejas. Nem imagina o quanto encarna fielmente o clássico bajulador. Ele mesmo, o bom e velho puxa-saco. Acredite. Essa racinha miserável não tem mãe. Nasce em casulos pendurados nas protuberâncias que ficam na região pélvica de artistas, celebridades, endinheirados de alguma classe, políticos de qualquer cargo e chefes de toda sorte.