Em algumas situações, os adolescentes se mostram não apenas mais prudentes que seus pais, mas também significativamente mais sagazes. A diretora norte-americana Debra Granik demonstra uma habilidade única em explorar os dilemas e os conflitos que permeiam a juventude, algo que já havia evidenciado em “Inverno da Alma” (2010). Nesse filme, ela revelou ao mundo o talento inigualável de Jennifer Lawrence, que encarnou uma jovem forçada a assumir responsabilidades quase insuportáveis: cuidar da mãe, intelectualmente limitada, e de seus dois irmãos menores. A produção, assim como a performance de Lawrence, recebeu indicações ao Oscar 2011, marcando o início de uma trajetória brilhante para ambas. Em 2018, Granik ousou mais uma vez, apostando alto em “Sem Rastros”, um risco que se provou certeiro, dado o impressionante consenso crítico — 100% de aprovação no Tomatometer, do Rotten Tomatoes, plataforma referência em avaliações cinematográficas.
Desta vez, Granik narra a história de Will e sua filha Tom, uma dupla que vive isolada em uma vasta reserva florestal nos arredores de Portland. Apesar do isolamento absoluto, ambos parecem plenamente adaptados a essa existência, muito embora o governo dos Estados Unidos discorde veementemente. A ocupação de terras públicas — mesmo por aqueles que o sistema marginalizou e esqueceu — é combatida com rigor pelas autoridades. Sob a intervenção do serviço social, pai e filha são forçados a deixar a reserva, tornando-se sujeitos à tutela estatal. Essa ruptura desencadeia uma série de eventos que expõem um abismo crescente entre o modo como Will e Tom percebem a vida que levavam — para ele, um refúgio necessário; para ela, um cárcere emocional em lento desmoronamento.
No papel de Will, Ben Foster entrega uma atuação que reafirma sua especialidade em retratar personagens marginalizados. Com uma nuance rara, ele constrói um homem perturbado e contraditório, que não é simplesmente um “bom” ou “mau” pai, mas alguém cujo comportamento só pode ser compreendido sob a luz da psicopatologia. Foster, aqui, evoca ecos de seu papel em “A Qualquer Custo” (2016), mas adiciona uma camada de humanidade pungente e complexa. Will é um veterano de guerra profundamente marcado pelos horrores que enfrentou, mas suas decisões revelam uma incapacidade de enxergar a autonomia emergente de sua filha. Essa relação asfixiante é iluminada pela interpretação magistral de Thomasin McKenzie, que dá vida a Tom. Com uma presença que transcende sua figura aparentemente frágil, McKenzie encarna o contraponto perfeito à desordem emocional de Will, demonstrando uma força que já despontava em sua atuação como a jovem judia em “Jojo Rabbit” (2019), de Taika Waititi.
A tensão entre pai e filha é sutilmente construída ao longo da narrativa, alcançando momentos de rara delicadeza e melancolia. Uma das cenas mais memoráveis ocorre durante uma refeição simples de cogumelos, quando Tom admite, quase timidamente, que ainda está com fome. Esse pequeno gesto, tão banal à primeira vista, encapsula a fragilidade de uma relação onde as necessidades básicas — emocionais e físicas — são frequentemente negligenciadas. Esse microcosmo da trama expõe o cerne do conflito: enquanto Will enxerga na vida isolada um resgate para seus traumas, Tom começa a perceber que aquele estilo de vida é insustentável para suas aspirações e crescimento.
Ao longo da história, torna-se evidente que a coexistência de Will e Tom é insustentável. A jovem, que anseia por uma conexão com o mundo exterior, percebe que o isolamento imposto pelo pai a priva de experiências fundamentais para sua formação como indivíduo. Ainda assim, a lealdade à figura paterna a conduz por caminhos sombrios, marcados por autossabotagem e frustrações. Em determinado momento, ambos encontram uma comunidade alternativa que parece oferecer algum alívio às tensões. Contudo, mesmo ali, a incapacidade de Will de se integrar reafirma sua natureza como uma força que, em vez de ancorar, arrasta sua filha para as profundezas de seu próprio desespero.
O drama de “Sem Rastros” dialoga com outros filmes que abordam relações familiares profundamente marcadas por circunstâncias traumáticas. Como em “O Quarto de Jack” (2015), dirigido por Lenny Abrahamson, onde um menino e sua mãe são prisioneiros de uma realidade opressiva, Tom vive uma forma diferente, mas igualmente devastadora, de confinamento. Embora não haja muros ou cadeados, a convivência com um pai incapaz de compreender suas necessidades a mantém presa a um ciclo de dependência emocional e isolamento.
No desfecho, a dolorosa conclusão que se impõe é inescapável: existem vínculos que, por mais profundos que sejam, precisam ser rompidos para que ambas as partes possam encontrar sua própria redenção. Para Tom, essa libertação é uma jornada árdua, mas necessária, enquanto Will parece destinado a sucumbir ao peso de seus próprios demônios. A mensagem final do filme, brutal em sua simplicidade, ecoa como um lembrete de que, às vezes, amar significa saber a hora de partir, mesmo quando a escolha é devastadoramente difícil. Assim, o percurso de Tom se transforma em uma metáfora para os desafios universais de crescer, abandonar e seguir em frente.
★★★★★★★★★★