Tesouro europeu, na Netflix, vai te fazer sentir uma explosão de emoções e tocar cada canto da sua alma Diego Lopez Calvin / Netflix

Tesouro europeu, na Netflix, vai te fazer sentir uma explosão de emoções e tocar cada canto da sua alma

Misturar melodrama, revelações que parecem a ponto de vir à tona em círculos que só se mantêm graças à aura de segredo e uma dose generosa de sexo — filmado da maneira mais elegante, mas sexo mesmo assim — pode ser um flerte com o mau gosto, a manifestação cabal da falta de harmonia, como uma máquina feita por peças de tamanhos diferentes. No entanto, filmes como “Árvore de Sangue”, realizados sob esse padrão, se é que se trata de um padrão, podem ser, no mínimo, estimulantes, além de originais, claro.

Histórias como a contada por Julio Medem encerram tamanho pluralismo que frustram muito menos a audiência, sem a mais pálida ideia sobre o que esperar do enredo, disposta a assumir essa impressão e avançar bravamente até a última cena. O espanhol vale-se de mecanismos os mais absurdos a fim de apresentar seus personagens, como que saídos de um híbrido dos contos “A Biblioteca de Babel” (1941) e “O Aleph” (1949), do escritor argentino Jorge Luis Borges (1899-1986), tal é a atmosfera de desordem imanente a reger a trama.

Medem narra a trajetória de um jovem casal, Rebeca, interpretada por Úrsula Corberó, e Marc, vivido por Álvaro Cervantes, duas performances que por si sós já valem as mais de duas horas de projeção. Fica uma dúvida sobre se os dois passam por apuros no relacionamento; ambos parecem tão felizes que despertariam a invídia de qualquer donzela dos folhetins de antanho.

O diretor é perspicaz ao explorar esse argumento em seu roteiro e mostra as brincadeirinhas tolas que pares enamorados, mas só os verdadeiramente dominados pela paixão, fazem entre si quando o resto da humanidade silencia diante de seu amor. Não obstante, mesmo entre esses seres tocados pela mágica suprema do universo sempre há arestas a serem diminuídas, e para o fazer da maneira que acreditam menos traumática, Rebeca e Marc se propõem a escrever um livro a quatro mãos, relatando tudo o que sabem a respeito da vida remota de seus ancestrais.

Para se dedicar integralmente ao projeto, e, por óbvio, também para dar uma chance adicional à inspiração, viajam até a antiga casa dos avós da moça, ainda hoje uma bela propriedade, num lugar afastado no campo. Para o melhor aproveitamento da experiência, decidem se concentrar apenas em aspectos íntimos do que possam vir a se dizer, esquecendo política, ideologia ou qualquer outra bobagem quando se trata de sentimento.

Por esse motivo, não é nenhuma coincidência que surjam entre os dois assuntos que restavam quase perdidos da vida privada de cada um. Doravante, Medem começa a tirar o verniz de romantismo incondicional em que se fundava seu longa para imprimir sobre ele a atmosfera propriamente mística, sobrenatural, que passa a caracterizá-lo. Há a menção a cicatrizes nos corpos dos dois, adquiridas em circunstâncias parecidas e ao mesmo completamente diversas, como se uma força oculta os regesse e os impelisse a continuarem juntos, tópico que encaminha a discussão a outra abordagem. O amor dos dois resistiria à entrada em cena de um terceiro elemento, tanto pior se este sobe das profundezas mais nebulosas do passado?

A ascensão do general Francisco Franco (1892-1975) ao poder na Espanha, na esteira da Segunda Guerra Mundial, em 1939, leva famílias desesperadas a “doarem” seus filhos, despachados sobretudo à Europa Oriental e à Rússia, em plena cristalização do regime comunista iniciado com a Revolução Bolchevique em 1917. Esse foi o destino de Olmo, personagem de Joaquín Furriel, e Victor, de Daniel Grao, de onde voltam muitos, muitos anos depois.

No caminho dos dois, a interposição de Macarena, a ex-roqueira vivida por Najwa Nimri, torna a perturbar o enredo, que parecia já redondo. Típica rebelde sem causa e filha da alta burguesia europeia, Macarena luta contra a dependência química ao passo que assume um romance confuso com um dos irmãos, mesmo seduzida pelo outro. Ao se descobrir grávida, a personagem de Nimri também se percebe a cada dia mais presa de derivações psicóticas, o mesmo mal que se avulta na vida de Rebeca. Para dar um fecho ao núcleo fantástico do que é dito, Medem ainda lança mão de Nuria, de Lucía Delgado, colhida por uma tragédia pessoal, numa passagem também feita de elementos dramatúrgicos de sobra para chacoalhar a trama.

Há um instante em que o conteúdo — sem dúvida caudaloso — passa a ser preterido em favor da apresentação em si, e a fotografia de Kiko de la Rica, vencedor do Goya por “Branca de Neve” (2012), de Rupert Sanders, de tão preciosista, chega a obnubilar a condução da narrativa textual. O espectador se regala com exemplos em profusão da beleza das pradarias do interior da Espanha, em que De la Rica destaca tons de verde que cintilam à luz do sol outonal do hemisfério norte, enquanto soluções que caem do azul se avolumam, como o vínculo hermético entre Olmo e Nuria, e o fato de também Victor adquirir o vício em entorpecentes. Malgrado a falta de traquejo pontual, Julio Medem compõe uma novela que se sobressai pela autenticidade. Usando de um neorrealismo mágico mais suave, o diretor faz de “Árvore de Sangue” um trabalho digno de nota, quiçá até pelo simbolismo que abriga.


Filme: Árvore de Sangue
Direção: Julio Medem
Ano: 2018
Gênero: Drama
Nota: 9/10