Antídoto contra o mau humor, deliciosa comédia da Netflix vai aquecer seu coração e melhorar seu dia Divulgação / Netflix

Antídoto contra o mau humor, deliciosa comédia da Netflix vai aquecer seu coração e melhorar seu dia

Talvez mesmo sem querer, “Os Olhos Negros de Marilyn” tenda a glamourizar um assunto sério, que tomado por brincadeira quando deveria suscitar abordagens mais rigorosas, acaba prestando um desserviço à causa e aos 720 milhões de doentes mentais em todo o planeta, cerca de 10% da população da Terra. Por outro lado, é simplesmente impossível levar tudo a ferro e fogo, e como rindo castigam-se os costumes, louve-se a intenção de Simone Godano. Atribuam-se todos os defeitos a Godano e seu trabalho, menos o de tentar conferir algum charme artificial ao sofrimento psíquico ou a seus personagens, até porque eles são perfeitamente capazes de aparecerem por si sós. Para Clara, a mentirosa doentia e misantrópica, com evidentes dificuldades de socialização mesmo depois de inscrita no programa de assistência a indivíduos com alguma forma de desvio de autoimagem, incentivado pelo próprio serviço de saúde pública italiano, o mundo gira em torno de seu umbigo e a vida resume-se à frase “depois de mim, o dilúvio”. Um bom começo.

A personagem da excelente Miriam Leone continua presa de um egoísmo que a cega e não permite-lhe enxergar que a terapia, opção que substitui uma temporada na cadeia após ter ateado fogo na casa onde morava com o marido, é o caminho mais sensato. Tudo leva a crer que o incêndio, a partir de um cigarro que permaneceu aceso depois de um dia extenuante, não foi proposital; contudo pela maneira como Leone apresenta Clara resta óbvio que, a despeito de sua personalidade um tanto relapsa, ela necessita estar ali, em meio àquela gente pouco comum, embora faça de tudo para convencer os responsáveis pelo programa a lhe darem alta, principalmente agora que a carreira parece que vai engrenar de novo. Já Diego, o ex-chef de cozinha de Stefano Accorsi, fora parar ali por literalmente virar a mesa do restaurante onde trabalhava, e agora tem de se submeter a regras meio tirânicas se quiser rever a filha, por poucos minutos e acompanhado de uma assistente social. Nem Clara nem Diego se interessam pela vida um do outro, característica elementar entre portadores de distúrbios mentais em níveis alternados, estratégia de defesa oblíqua, como se uma vez que alguém que se admite cioso de uma outra pessoa, começasse a se reconhecer mais fraco. Mesmo assim, esses espíritos consortes no tormento acabam vislumbrando uma interseção que os une de um jeito categórico: o gosto pela comida, revelado depois de uma experiência pouco apetitosa.

Para dar continuidade ao argumento, Godano se concentra na natureza manipuladora, mas também inventiva, de Clara, que estreia um perfil nas redes sociais com uma foto da atriz americana Marilyn Monroe (1926-1962), sugerindo que alguém como Marilyn decerto frequentaria o restaurante onde seriam oferecidos os pratos vistos na página, plasticamente irretocáveis, mas nada saborosos, uma vez que, em sendo apenas figurativos, Clara os pudera confeccionar usando espuma para barba e o próprio pé, empreitada para a qual Diego dá seu beneplácito. O uso pelo diretor do mote das redes sociais como agentes falseadores da realidade indica afinação com algumas correntes teóricas disseminadas à larga nos anos 1940, e que ainda hoje se mostram certeiras, como a publicizada pelo sociólogo americano Harold Lasswell (1902-1978), que enunciava toda ação humana como uma resposta a provocações externas, ou seja, não contava que nas imagens não fossem exibidos pratos de verdade, comestíveis, desde que surtissem esse efeito, o de despertar a fome, o ímpeto por serem devorados. A sociedade aparentemente improvável dos dois — Clara, envolvente e ardilosa; e Diego, impulsivo, mas simplório —, como azeite balsâmico para gianduia, oscila entre memórias e emoções, cada qual variando de intensidade, dando ao filme, malgrado a elaboração do pano de fundo da doença mental sobreposto pelo da culinária, o caráter de uma história de amor quase inverossímil, mas logo digerida pela plateia.

Falando das coisas mais importantes da vida de uma maneira natural — e à luz da comédia bem equilibrada —, o trabalho de Godano exalta o amor, mas outrossim o amerceamento, a tolerância, a conciliação entre as pessoas. “Os Olhos Negros de Marilyn” não nega suas origens mediterrâneas, e se desdobra num genuíno banquete também para o espírito livre, livre de verdade.


Filme: Os Olhos Negros de Marilyn
Direção: Simone Godano
Ano: 2021
Gêneros: Drama/Comédia
Nota: 8/10