Um diamante para os olhos e para os ouvidos: um dos filmes mais belos do catálogo da Netflix Sabrina Lantos / Serendipity Point Films

Um diamante para os olhos e para os ouvidos: um dos filmes mais belos do catálogo da Netflix

As mais notáveis transformações sociais começam dentro do mais comezinho, do mais insignificante, até do mais abjeto espírito humano, malgrado nunca tenhamos uma noção muito firme do quão poderosos podemos vir a ser, para nós mesmos e no diz respeito a quem nos rodeia. Homens comuns protagonizam iniciativas às quais poucos se apercebem logo que começam a tomar corpo, tão irrisórias parecem e de alcance tão localizado; entretanto, são precisamente essas as verdadeiras transformações, as que, a despeito das contingências e dos percalços, vão se espalhando, frutificam, prosperam, até que cheguem ao resto do mundo, a quem cabe somente reconhecer a grandeza desses heróis improváveis, sujeitos aborrecidamente comuns que investem-se — até de um jeito bastante torto — do epíteto de filantropos. Ou apenas de grandes amigos de seu próximo.

Seres humanos nos perdemos e conseguimos nos reapossar de nossa razão e da dignidade ofendida mil vezes para outras mil vezes voltarmos a nos embrenhar na mata cerrada da insânia, devorando-nos e nos prestando à condição de feras sanguinárias de inúmeros outros homens, na carnificina diabólica e sem fim da existência neste plano de horrenda mesquinhez. Aprendemos pouco com os erros milenares de nossos infelizes ancestrais, quiçá à espera do arrebatamento dos anjos ou do socorro dos bárbaros, trazendo alguma falsa solução com que teremos o maior prazer de nos iludir. Essa poética miragem em que o existir revela-se-nos como uma fantasia ideal, livre de todos os obstáculos que atravancam-nos a felicidade possível, não  obstante as quadras da História em que a humanidade é tomada do pesar extremo pelo que lhe responde o destino ao seu desprezo pela civilização, é o mote de “O Cântico dos Nomes”, em que o franco-canadense François Girard abre uma imensa janela para paisagens cada vez mais negligenciadas do que deveria ser a definição por excelência de uma pessoa.

A poesia seca do roteiro de Jeffrey Caine vira um mosaico de cenas de rara sensibilidade nas quais Girard principia um desfile das tantas metáforas ligadas à música — e, por extensão, da arte como um todo — e sua relevância na vida do homem, qualquer homem, especialmente ao longo de guerras, retrato cabal da estupidez do homo sapiens sapiens e da incerteza do estar no mundo. Caine adapta muito a seu modo, e com muita argúcia, o romance de Norman Lebrecht, e a direção de Girard, por seu turno, dá preferência aos enquadramentos mais intimistas dos planos médios e dos primeiros planos, ressaltando a atmosfera depressiva, quase tétrica, do que se vê em cena. A alegria calculada de londrinos do começo dos anos 1950, pós-Segunda Guerra, fica restrita à sequência de abertura, em que Dovidl Rapaport, um garoto-prodígio da música erudita, interpreta Bach e Bruch como se nunca tivesse feito outra coisa. A fotografia de David Franco exacerba esse lirismo genuíno, mas triste, dando ao diretor a oportunidade irretocável para apresentar Martin, um amigo de Rapaport e também violinista, igualmente talentoso, mas sem o mesmo brilho.

Girard dá um salto de trinta anos e recoloca Martin na pele do competente Tim Roth, à procura daquele amigo e de si mesmo. Subtramas com pano de fundo histórico, a exemplo da transferência da família de Martin para Treblinka, apenas arranham a superfície de um assunto exponencialmente denso como o Holocausto. No entanto, “O Cântico dos Nomes” consegue reparar um possível dano narrativo involuntário como a entrada em cena de Clive Owen como o Rapaport adulto, um homem com uma visão um tanto idiossincrásica (e amarga) sobre as próprias origens.


Filme: O Cântico dos Nomes
Direção: François Girard
Ano: 2019
Gêneros: Drama
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.