As mais notáveis transformações sociais começam dentro do mais comezinho, do mais insignificante, até do mais abjeto espírito humano, malgrado nunca tenhamos uma noção muito firme do quão poderosos podemos vir a ser, para nós mesmos e no diz respeito a quem nos rodeia. Homens comuns protagonizam iniciativas às quais poucos se apercebem logo que começam a tomar corpo, tão irrisórias parecem e de alcance tão localizado; entretanto, são precisamente essas as verdadeiras transformações, as que, a despeito das contingências e dos percalços, vão se espalhando, frutificam, prosperam, até que cheguem ao resto do mundo, a quem cabe somente reconhecer a grandeza desses heróis improváveis, sujeitos aborrecidamente comuns que investem-se — até de um jeito bastante torto — do epíteto de filantropos. Ou apenas de grandes amigos de seu próximo.
Seres humanos nos perdemos e conseguimos nos reapossar de nossa razão e da dignidade ofendida mil vezes para outras mil vezes voltarmos a nos embrenhar na mata cerrada da insânia, devorando-nos e nos prestando à condição de feras sanguinárias de inúmeros outros homens, na carnificina diabólica e sem fim da existência neste plano de horrenda mesquinhez. Aprendemos pouco com os erros milenares de nossos infelizes ancestrais, quiçá à espera do arrebatamento dos anjos ou do socorro dos bárbaros, trazendo alguma falsa solução com que teremos o maior prazer de nos iludir. Essa poética miragem em que o existir revela-se-nos como uma fantasia ideal, livre de todos os obstáculos que atravancam-nos a felicidade possível, não obstante as quadras da História em que a humanidade é tomada do pesar extremo pelo que lhe responde o destino ao seu desprezo pela civilização, é o mote de “O Cântico dos Nomes”, em que o franco-canadense François Girard abre uma imensa janela para paisagens cada vez mais negligenciadas do que deveria ser a definição por excelência de uma pessoa.
A poesia seca do roteiro de Jeffrey Caine vira um mosaico de cenas de rara sensibilidade nas quais Girard principia um desfile das tantas metáforas ligadas à música — e, por extensão, da arte como um todo — e sua relevância na vida do homem, qualquer homem, especialmente ao longo de guerras, retrato cabal da estupidez do homo sapiens sapiens e da incerteza do estar no mundo. Caine adapta muito a seu modo, e com muita argúcia, o romance de Norman Lebrecht, e a direção de Girard, por seu turno, dá preferência aos enquadramentos mais intimistas dos planos médios e dos primeiros planos, ressaltando a atmosfera depressiva, quase tétrica, do que se vê em cena. A alegria calculada de londrinos do começo dos anos 1950, pós-Segunda Guerra, fica restrita à sequência de abertura, em que Dovidl Rapaport, um garoto-prodígio da música erudita, interpreta Bach e Bruch como se nunca tivesse feito outra coisa. A fotografia de David Franco exacerba esse lirismo genuíno, mas triste, dando ao diretor a oportunidade irretocável para apresentar Martin, um amigo de Rapaport e também violinista, igualmente talentoso, mas sem o mesmo brilho.
Girard dá um salto de trinta anos e recoloca Martin na pele do competente Tim Roth, à procura daquele amigo e de si mesmo. Subtramas com pano de fundo histórico, a exemplo da transferência da família de Martin para Treblinka, apenas arranham a superfície de um assunto exponencialmente denso como o Holocausto. No entanto, “O Cântico dos Nomes” consegue reparar um possível dano narrativo involuntário como a entrada em cena de Clive Owen como o Rapaport adulto, um homem com uma visão um tanto idiossincrásica (e amarga) sobre as próprias origens.
Filme: O Cântico dos Nomes
Direção: François Girard
Ano: 2019
Gêneros: Drama
Nota: 8/10