Dramas de família podem terminar de muitas formas — ou não terminar nunca. De todo modo, por mais íntimas que pareçam, escolhas nunca são individuais de todo, podem definir a vida de alguém para o bem ou para o mal e um dia, muito antes do que se pense e do que se queira, revelam tudo o que esconderam ao longo dos anos. “Um Filho” consegue ser ao mesmo tempo uma história autônoma e, claro, ligar-se imediatamente a “Meu Pai”, ambos trabalhos primorosos do francês Florian Zeller, numa transição bastante feliz dos palcos para a tela grande. A versão teatral de “Um Filho” não contou com o mesmo sucesso do espetáculo anterior, apresentado no Théâtre Hébertot, em Paris, com Robert Hirsch (1925-2017) e Isabelle Gélinas. Com “Meu Pai”, cuja estreia se deu num já distante setembro de 2012, Zeller conquistou o Prêmio Molière de Melhor Peça de 2014, e é provável que fosse este o estímulo que faltava para que o diretor assumisse de uma vez por todas seu lado cineasta. Antes tarde do que nunca.
Como em “Meu Pai”, “Um Filho” faz uso quase matemático da poesia, e isso não tem relação compulsória com beleza. No transcurso de mais de duas horas, o roteiro de Zeller e Christopher Hampton — responsáveis também pela adaptação do longa de 2022 — é marcado por passagens em que a narrativa dança com a felicidade possível da trama, embora, já pouco depois da abertura, o filme torne-se mesmo desabridamente melancólico, e essa tristeza imanente, pairando sobre tudo quanto acontece e ainda pode acontecer, leveda a seu tempo, desdobrando-se na tragédia assustadora do desfecho. A mãe que acalanta seu bebê numa cena despretensiosamente linda, com Vanessa Kirby numa espécie de revival invertido da Martha Weiss de “Pieces of a Woman” (2020), o drama igualmente dialético de Kornél Mundruczó, é tão intensa e tão provocativa — especialmente depois que se chega ao último segmento — que Beth, sua personagem, acaba por se transformar no alvo da simpatia e do repúdio da audiência, quiçá na mesma proporção. Tudo segue uma ordem rigorosamente estudada, sem prejuízo da organicidade, e quando Beth sembra a ponto de embarcar num transe hipnótico fitando o recém-nascido Theo, que se mantém em vigília, mas sereno como um querubim, percebe alguém fazendo o mesmo com ela. Peter, o marido de um surpreendente Hugh Jackman, também quer apenas sorver aquele momento, mas o receio de que a criança se agite os leva para a sala. A fotografia de Ben Smithard, outro nome a figurar nos créditos de “Meu Pai’, conserva a luz sempre baixa, elaborando as sombras com precisão, e a edição de Yorgos Lamprinos, vencedor do prêmio de Melhor Edição da Los Angeles Film Critics Association pelo trabalho no primeiro longa de Zeller, como no antecessor também nos desnorteia. Peter atende ao celular para dar a ideia de ser um homem muito ocupado (como se precisasse), e, finalmente, a harmonia desse lar é rompida com o conflito que se arrasta até o fim, em gradações distintas.
Kate, a ex-mulher de Peter, bate à porta, desesperada, em situação diametralmente oposta a de Beth. Malgrado num papel bastante irregular, Laura Dern é capaz de sacudir um tanto a previsibilidade de “Um Filho”; a maneira como incorpora a esposa trocada por uma mulher vinte anos mais jovem, que, por mais magnânima que se revele, personifica a imagem da usurpadora de atenções que deveria ser de outra, sem jamais permitir-se contaminar pelo rancor, é um bom aperitivo para o que Zen McGrath tem a oferecer. Nicholas, o típico adolescente dominado por traumas que não vence — em parte porque também não quer — confere uma inaudita substância dramática numa quadra em que o enredo parecia querer derivar para a vulgaridade de adultos muito satisfeitos com suas misérias existenciais. Zeller nunca deixa vir a lume o perigo que Nicholas representa para si mesmo, e, no mesmo movimento, insufla essa possibilidade; quando tudo se encaminha para o pior fim possível, como espera quem já conviveu com alguém com transtornos mentais semelhantes, o tratamento que o diretor imprime ao epílogo, mesmo longe de surpreendente, é digno de nota — e nesse particular, é também espantosa sua habilidade em dobrar mesmo o espectador de couro mais duro, e sugerir um final dentro do filme, com o personagem de McGrath pronto para decolar numa carreira de romancista, cujo primeiro livro tem um título tão brega quanto vigoroso. Anthony Hopkins consta no elenco, mas sua participação é quase burocrática. Quem importa mesmo aqui é não “um”, mas “o” filho.
Filme: Um Filho
Direção: Florian Zeller
Ano: 2023
Gêneros: Drama/Ficção
Nota: 9/10