Lançado em 2017, “Blade Runner 2049” é, além de desesperadoramente atual, fiel à matriz de que saíra. O estranhamento quanto ao filme de Denis Villeneuve, que ganhou as telas três décadas e meia depois de “Blade Runner” (1982), o inaudito blockbuster de Ridley Scott, é que um produto cultural só há de fazer sentido se inserido no contexto sociopolítico de seu tempo, e a partir de então, é tomado por aquilo que passa a ser, adquire vida nova, como se o antecessor nem tivesse tanta relevância assim — o que, definitivamente, não é o caso — ou quisesse matar o pai — idem. Um dos cineastas mais sofisticados do cinema hoje, o franco-canadense nunca se furtou a exaltar a genialidade do britânico, e Scott, por seu turno, sempre reconheceu que seu trabalho, primoroso, poderia não estar a salvo de retoques — como todo produto cultural, aliás. Juntou-se à fome a vontade de comer, ou por outra, o desejo de retaliação à necessidade de matar.
Tanto Villeneuve como Scott têm claro que novos mundos muitas vezes se nos abrem das agitações da dúvida, e perguntas nem sempre soam oportunas. Não por acaso, o livro de onde saiu “Blade Runner” e por conseguinte sua versão 5.0, encerra um questionamento, decerto extravagante, vesano até, mas apropriado, apaixonadamente racional. Um dos expoentes mais complexos, mais diversos, mais inventivos e afrontosos da cultura pop da segunda metade do século 20, Philip K. Dick (1928-1982) não era, contudo, um entusiasta de primeira hora da versão fílmica de “Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?”, seu melhor romance, o mais famoso, o mais insano, o mais bonito, publicado em 1968. Passados dois anos, em 1970, soube que os direitos autorais da obra haviam sido vendidos pela editora nova-iorquina Doubleday sem o seu consentimento e adquiridos pelo produtor Herb Jaffe, que encarregara o filho, Robert, de roteirizar a história. “Bato em você aqui no aeroporto ou no meu apartamento?”, teria dito o escritor, ao ser recepcionado por Jaffe para um encontro com o qual concordara a fim de tentar aparar todas aquelas arestas e, na melhor das hipóteses, dissuadi-lo de seguir com tal despautério. Felizmente, não houve nenhuma sessão de insólito pugilato: em 1977, mais um produtor, Michael Deeley, incorporar-se-ia à empreitada que tornaria possível, enfim, que o projeto se sustentasse e a tal história louca sobre um caçador de androides aportasse nas telonas pela primeira vez em 25 de junho de 1982. No decorrer de 35 anos, a primeira transcrição cinematográfica do livro de PKD nunca foi unanimidade, para o bem e para o mal. Ainda que tivesse fôlego para ser muito mais que um cult, venerado por cinéfilos tarados em cineclubes suspeitos a horas mortas, demorou para que o “Blade Runner” de Scott atingisse a aura de clássico que sempre mereceu, a despeito da cara fechada daqueles fãs mais refratários — e intolerantes —, crianças birrentas que queriam o bolo todo só para si mesmas.
Scott, ajuizadamente, declinara da missão de dirigir a sequência de um filme seu, envolvido que estava com outros projetos, e se comprometera “apenas” com a produção executiva, leia-se, angariar ao menos uma fração do orçamento multimilionário da nova leitura de “Blade Runner”. Villeneuve fazia tempo já havia mostrado a que viera ao apresentar trabalhos muito acima da média, a exemplo de “Os Suspeitos” (2013), “O Homem Duplicado” (2013), “Sicario: Terra de Ninguém” (2015), e o incomparável “A Chegada” (2016), seguramente um dos filmes mais emblemáticos do novíssimo cinema do século 21, instigante, impactante, revolucionário, simbólico em tudo quanto concerna ao ímpeto do homem por progresso, por domínio da tecnologia, pela subjugação de formas de vida e, quem sabe, civilizações que julga inferiores. A nave decola e, no Brasil, a 5 de outubro de 2017, um dia antes do que acontece nos Estados Unidos, “Blade Runner 2049” chega às salas de projeção.
K, o personagem de Ryan Gosling, caça os replicantes, ele próprio um espécime híbrido, mistura só aparentemente ordenada, mas confusa, de ser humano e uma série do que se convencionou chamar hoje de algoritmos, que por terem fim, também implicam em morte. Seu alvo principal é Rick Deckard, o replicante de 1982 que, inexplicavelmente, resistira ao tempo, às perseguições, à obsolescência do software e vive sem dar satisfação a ninguém, tudo o que K quer para si. A certeza do fim o apavora, ao mesmo tempo em que reflete sobre se faria sentido continuar, a exemplo de Rick Deckard — com Harrison Ford em aparições dispensáveis, malgrado sua presença por si só já inspire no público uma emoção atávica — encarnando um pária, fugindo, tendo relações que nunca chegam ao ápice, por mais perfeição que emulem. K jamais é negligenciado por Joi, a namorada virtual composta por Ana de Armas, verídica exclusivamente para ele, mas sem qualquer coisa que a vincule ao plano da matéria, à lembrança da carne; Joi não passa de um aplicativo desenvolvido pela Wallace Corporation, responsável por fabricar os replicantes, enquanto Deckard é casado.
À luz do existencialismo, corrente filosófica nascida a partir das teorias do pensador dinamarquês Søren Kierkegaard (1813-1855), e difundida com espalhafato e, pior, deliberados equívocos pelos franceses Jean-Paul Sartre (1905-1980) e Simone de Beauvoir (1908-1986), a existência sempre terá mais valor que a essência, ou seja, ninguém nunca é nada até que tenha algum conhecimento empírico concreto, alguma experiência prática que lhe confira lastro para se intitular o que se pretende. K se quer humano, mas falta-lhe a humanidade — não é capaz de ter sentimentos, e as poucas manifestações do que se poderia compreender como sua alma são sempre pontuadas por segundos propósitos, até que se lembra de um brinquedo, um cavalinho de madeira, o MacGuffin que empresta todo significado a “Blade Runner 2049”.
Sob a perspectiva estética, “Blade Runner 2049” é uma festa. A fotografia de Roger Deakins é, sem dúvida, um dos pilares mais sólidos do enredo, forte o bastante para carregar nas costas cerca de três horas de um filme cuja mensagem ainda vai levar boas décadas para ser incorporada. A magnum opus de Denis Villeneuve, como o “Blade Runner” de Scott — até o momento em que redijo este ensaio —, nasceu envolta numa atmosfera noir de cinzenta hesitação num mundo mais e mais assumidamente distópico, povoado por uma humanidade a cada dia mais conformada com sua perdição, com seu fracasso. As máquinas estão vencendo. Como PKD, também ouso perguntar: vencerão?
Filme: Blade Runner 2049
Direção: Denis Villeneuve
Ano: 2017
Gêneros: Ficção Científica/Ação
Nota: 10/10