Um filme como “Orgulho e Preconceito e Zumbis” pode ser uma bobagem irremediável ou uma forma inaudita, porém razoável, de se repensar dadas convenções, do próprio cinema, inclusive, quanto ao olhar que se lança a produções de época. Decerto é necessário boa dose de arrojo, de ousadia, de insânia até, para se arrancar do pedestal uma imagem tão vultosa como a inglesa Jane Austen (1775-1817), uma das artistas que melhor retratou o lado obscuro da sociedade em que viveu, dando origem a uma narrativa caudalosa, espraiada em três volumes. “Orgulho e Preconceito” (1813) é o segundo, precedido por “Razão e Sensibilidade” (1811), e a senda aberta pela escritora para chegar a “Persuasão” (1817), onde libera de vez seu anseio por uma sociedade de fato justa, em que todas as mulheres pudessem ser como Anne Elliot, a anti-heroína repleta de caprichos, mas feita também de sonhos os mais nobres. Nessa margem larguíssima deixada por Austen em seus romances, sem dúvida pedidos surdos por socorro de uma alma muito delicada para o mundo em que viveu, Burr Steers se instala e, a exemplo da autora, também diz suas verdades. Mas a plenos pulmões.
No filme de Steers, as confabulações da aristocracia — e de quem se queria aristocracia — permanecem, e é justamente desses pequenos descompassos entre o que as pessoas de fato são e o que tentam ser (e não conseguem) de que o roteiro do diretor se aproveita a fim de narrar uma história que se encerra em si mesma ao passo que abre flancos para que novas abordagens surjam, malgrado quase sempre nada seja o que parece. Essa é a metáfora que norteia todo o filme, de que se vai apropriando com mais vontade até que o argumento central aflore de vez. Na introdução, já se sabe perfeitamente no que consiste a trama: um efebo destemido além da conta é visto tomado de ferimentos, e como a epidemia de mortos-vivos já se tornou uma paranoia entre toda a população de Longbourn, na Inglaterra rural de fins do século 18. O Darcy Bingley de Sam Riley continua viril e afoito como a versão de Matthew Macfadyen para o personagem no filme “original” de Joe Wright, levado à tela onze anos antes, mas aqui Darcy incorpora o espírito justiceiro que o empurra para o combate com as criaturas diabólicas de que fala o título, sem, por óbvio, abster-se da paixão arrebatadora por Elizabeth Bennet, a segunda das cinco filhas de um clã decadente, cuja mãe, da ótima Sally Phillips, envida todas as energias a desposá-las, o que, naturalmente, acontece, mas só no último minuto. Se Wright preenchia as vacilações da família Bennet quanto a asseverar seu futuro com os diálogos mordazes de Austen acerca da hipocrisia quase discreta dos novos-pobres de seu tempo, Steers o faz adicionando a horda de zumbis surgem da lama dos charcos que rodeiam Berkshire, no sudeste inglês — sem prejuízo do que nos lega a pena da romancista. Isso é que é tão perturbador em seu trabalho.
O enredo segue no zigue-zague de mostrar duas faces de uma moeda cada vez mais fúlgida, reservando para o final intacta a representação do amor romântico, com o casamento duplo que diverte e emociona, tanto mais simbólico depois de superados os desafios do outro mundo propostos pelo diretor. E se tal acontece, louve-se a performance de Lily James, que como Lizzie nem é tão bonita, mas tem um carisma de derreter estátuas de bronze, aliado à força do talento. “Orgulho e Preconceito e Zumbis” seria outro filme — talvez melhor, possivelmente não — sem ela.
Filme: Orgulho e Preconceito e Zumbis
Direção: Burr Steers
Ano: 2016
Gêneros: Comédia/Romance/Terror
Nota: 8/10