Arrepiante, lindo e imprevisível, romance filosófico na Netflix é uma obra-prima perturbadora Divulgação / Max Films

Arrepiante, lindo e imprevisível, romance filosófico na Netflix é uma obra-prima perturbadora

O tropo, meio surrado, de que o amor é como uma fera selvagem, oculta nos lugares mais recônditos do secreto coração do homem, experimenta uma benfazeja renovação com “Corações Gelados”, uma aposição de metáforas originais, irreverentes, líricas, mas sobretudo pungentes que se alongam em torno do afeto mais primário que pode unir um homem e uma mulher, tentando ainda definir o ponto em que o sentimento amoroso salva ou perde uma pessoa, ou duas. O canadense Kim Nguyen isola seus protagonistas na vastidão branca da neve de Iqaluit, no extremo norte de seu país, a fim de conseguir tirar deles o sumo da amargura de que só mesmo o amor e todas as suas muitas derivações são capazes, movimento perigoso, que poderia ter resvalado num dramalhão sem volta. Contudo, a força da história — mormente a força da história que não se mostra — nunca arrefece, indo, aliás, na contramão das expectativas.

A todo instante, a fotografia de Nicolas Bolduc confunde-se com o roteiro, colando à história o paradoxo da amplitude sufocante e sufocada que guia o filme até o desfecho, quando essa sensação chega mesmo ao limite. Todo aquele alvor, toda aquela névoa, toda aquela enormidade de terra caiada de frio, põe-nos tristes como o diabo, mas Nguyen sabe contrabalançar a melancolia dos encontros malogrados pela vida afora com notas (ainda que agridoces) de esperança. Em conversas sobre Gil Scott-Heron (1949-2011) e Jack White — e sonhos com túneis, e caçadas com rifles —, Roman, o antimocinho de Dane DeHaan, torna-se menos etéreo e, mais importante, destrincha um pouco de sua carnuda melancolia. O diretor vai salpicando cenas algo desconexas, como as que mostram uma festa ou uma competição de trenós, preparando a audiência para os lances verdadeiramente oníricos e de todo absurdos, que convertem-se na tônica de “Corações Gelados”. Lucy, a namorada que o ama mais do que a si mesma, passa a tomar parte no enredo pouco antes da primeira grande virada, que ratifica o caráter destemidamente autoral do trabalho de Nguyen.

Tatiana Maslany empresta ao filme uma mancheia da doçura possível de Lucy, ainda mais perdida que Roman, que algum esforço conseguiria viver sem ela — se ela deixasse. Uma breve separação tem fim depois que ela gasta as parcas moedas que lhe sobraram de um emprego precário e viaja para rever aquele que elege como seu pobre salvador, e desse ponto em diante, o diretor está sempre alimentando o confronto de Lucy e do urso mencionado no título original. Dublado por Gordon Pinsent, o marido de Julie Christie no avassalador “Longe Dela” (2006), dirigido por Sarah Polley, esse animal lúgubre, que fala num tom exasperantemente choroso, é o interlocutor mais frequente de Roman em conversas entre filosóficas e pueris, e a forma como Nguyen é capaz de amarrar essas três tristes figuras, dando merecida ênfase à anti-heroína de Maslany, atormentada por um trauma provocado pelo pai, com John Ralston numa participação muito rápida, mas que causa espécie.


Filme: Corações Gelados
Direção: Kim Nguyen
Ano: 2016
Gêneros: Romance/Drama
Nota: 9/10