Últimos dias para assistir na Netflix: a obra-prima de Spielberg que vale cada segundo do seu tempo Allstar / Paramount Pictures

Últimos dias para assistir na Netflix: a obra-prima de Spielberg que vale cada segundo do seu tempo

À luz do existencialismo, corrente filosófica nascida a partir das teorias do pensador dinamarquês Søren Kierkegaard (1813-1855), e difundida com espalhafato pelos franceses Jean-Paul Sartre (1905-1980) e Simone de Beauvoir (1908-1986), a existência sempre terá mais valor que a essência, ou seja, ninguém nunca é nada até que tenha alguma vivência concreta, alguma experiência prática que lhe confira lastro para se intitular o que se pretende. Seres humanos só conseguimos nos tornar alguma coisa na medida em que vencemos a resistência dos demais e lhes provamos que somos mesmo o que dizemos ser, ousadia que não se comete impunemente. O homem passa a vida temendo a postura que assume diante de dificuldades que lhe atravancam o prosaico cotidiano, por mais que pense e repense seu proceder, justamente porque sabe que algum dia essa fatura vai chegar e ele há de prestar contas de tudo quanto fez — e tanto mais do que deixou de fazer. Acossado por suas escolhas, o gênero humano avança no tempo confrontado com um medo do futuro que não raro degenera na paranoia fundada numa insana disputa entre o bem e o mal, conjuntura que o existir lhe apresenta sob a forma de um interminável ir e vir de sensações que beiram o absurdo.

Philip K. Dick (1928-1982) era um visionário. Tal como George Orwell (1903-1950), PKD teve iluminações verdadeiramente geniais quanto ao lugar do cidadão comum num mundo sempre desesperado por controle, esmagado por um Estado onipresente e sequioso por resultados, seja lá o que isso queira dizer. Mais o homem sonha com a liberdade possível, mais o austero sistema lhe mostra que nem isso lhe cabe, que seu papel é sublimar as dores de sua débil humanidade e alimentar a máquina sem protestos, até que a morte lhe venha em socorro. Steven Spielberg alicerçou sua carreira em histórias que de algum jeito remetem à inadequação fundamental do homem, apelando à racionalidade ao passo que também não deixa de fora a emoção. “Minority Report — A Nova Lei” é seu grito de alerta para os perigos de uma era de desordem cada vez mais flagrante, em que seremos todos prisioneiros de nossas más intenções.

Tomando o roteiro de Jon Cohen e Scott Frank, uma boa adaptação de um dos contos de PKD — de onde também saiu “Blade Runner 2049” (2017), versão segura e refinada de Denis Villeneuve para o clássico da ficção científica de 1982, dirigido por Ridley Scott —, Spielberg alcança alturas proféticas em sua distopia, seguindo as pegadas do autor de “Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?”, seu melhor livro, o mais famoso, o mais delirante, o mais bonito, publicado em 1968. Em 2054, John Anderton, chefe de um tal Departamento de Pré-Crime do Distrito de Columbia, sofre de um ligeiro tédio, renitente, uma vez que não se registra um assassinato há seis anos, período que coincide com o da morte de seu filho. Essa é a primeira pista — talvez falsa, talvez não — quanto ao temperamento errático do anti-herói de Tom Cruise, não em sua melhor forma, já que Cruise, essa força da natureza, parece aprimorar técnica e talento de um ano para o seguinte em produções que lhe exigem tudo, emoção, condicionamento físico, disciplina e perspicácia quanto ao desempenho dos colegas, mas irretocável. Algumas sequências adiante, o diretor coloca seu anti-herói em circunstâncias desabridamente suspeitas, o que leva o espectador a concluir — talvez acertadamente, talvez não — que Anderton tenha sido uma vítima do sistema que é pago para defender, o que degringola numa cornucópia de situações plenas de ambivalência semântica. Vilões e pretensos mocinhos tocam-se sem cerimônia.

O diretor de arte Alex McDowell cria ambientes esteticamente perturbadores, em especial os tanques cintilantes de um azul meio hipnótico onde repousam os pré-cogs, criaturas híbridas que escondem sob a forma de humanoides o cérebro eletrônico capaz de interceptar pensamentos criminosos e, assim, dar o alerta às autoridades. A dada altura, Anderton revela seu lado mais sentimental ao se comparecer de Agatha, a pré-cog de Samantha Morton, numa atuação não menos que apaixonada (que atriz raspa a cabeça por uma personagem hoje?). Essas condescendências despertam em burocratas algo sinistros, como o cínico Danny Witwer, de Colin Farrell, o ímpeto de destruir o protagonista de Cruise, valendo-se daquele seu possível calcanhar de Aquiles mencionado antes. E nem o lendário Lamar Burgess — Anthony Burgess (1917-1993) é o autor de “Laranja Mecânica” (1962) —, do grande Max von Sydow (1929-2020) pode salvá-lo.

“Minority Report — A Nova Lei” é uma festa para os sentidos, sem prejuízo da reflexão filosófica. Raras vezes na história do cinema conjugou-se tão perfeitamente razão e sensibilidade, ainda Spielberg opte por deixar pontas soltas pelo caminho, quiçá para estimular em nós esse gosto pela especulação intelectual e pelo nonsense. Mas não precisava: a genialidade e o ineditismo em várias frentes deste seu trabalho nos levam às agruras do futuro sem que as tenhamos de experimentar. Arte pura.


Filme: Minority Report — A Nova Lei
Direção: Steven Spielberg
Ano: 2002
Gêneros: Thriller/Ficção científica/Ação
Nota: 9/1