Último dia para assistir na Netflix: um dos melhores filmes de vingança da história do cinema Divulgação / Paramount Pictures

Último dia para assistir na Netflix: um dos melhores filmes de vingança da história do cinema

O melhor jeito de se tocar em assuntos espinhosos é, sem dúvida, como John Singleton (1968-2019) faz em “Quatro Irmãos”. Resolvido a deixar por legado sua visão de mundo sobre temas tão polêmicos quanto racismo, etarismo, imigração (legal ou não), Singleton, um homem que nunca se importou muito com o que poderiam pensar a seu respeito, tem um vasto currículo na direção e na produção de filmes assumidamente panfletários, em que se sente já nas primeiras cenas o peso do que vai dizer. Em “Quatro Irmãos”, o diretor, elabora a inusitada fusão de passagens entre edificantes e quase ofensivas e lances que chafurdam sem pejo na violência mais rasteira, obtendo um todo, por incrível que possa parecer, homogêneo, que não ganha espaço na trama por mera coincidência, muito pelo contrário. Toda a malandragem artística de Singleton aflora no momento oportuno, e só porque ele permite, sabendo perfeitamente que destino vai lhe dar.

Uma senhora de sessenta e muitos anos — aparentando ainda mais graças aos volumosos cabelos brancos — entra numa loja de conveniência numa região abandonada de Detroit, a cidade mais populosa do Michigan, no nordeste da América. O espectador depende da força persuasiva dessa imagem para acreditar que alguma coisa ali não vai acabar bem, e Fionnula Flanagan tem esse poder. Evelyn Mercer, uma senhora acima de qualquer suspeita, tenta fazer com que o balconista não chame a polícia para levar um menino pego furtando doces, e depois de alguma insistência e muita lábia num discurso em que evoca a importância da família, da escola, da moral, da religião, o garoto é liberado e ela pode, afinal, escolher um peru gordo e tenro para servir na ceia da noite de Ação de Graças. Pano rápido.

O roteiro de David Elliot e Paul Lovett está sempre em aberto flerte com o pandemônio mais inescapável. Como se poderia supor (e desejar), um episódio corriqueiro — malgrado a conduta delinquente do menino — leva ao banho de sangue que desencadeia o mote de uma história a um só tempo fantasiosa e realista, idiossincrásica e simbólica. Esse é o gancho que Singleton usa para introduzir em sua maçaroca fílmica Bobby, Angel, Jeremiah, o Jerry, e Jack, irmãos de criação adotados por Evelyn quando crianças. Na verdade, os personagens de Mark Wahlberg, Tyrese Gibson, Andre Benjamin e Garrett Hedlund só cresceram no mesmo lar porque Evelyn, uma espécie de filantropa profissional, não conseguiu arranjar-lhes uma família, informação dada pelo tenente Green de Terrence Howard — e como tudo no texto de Elliot e Lovett, esse detalhe mínimo também é solto de forma a passar sem a devida nota quando é das peças mais indispensáveis do quebra-cabeça com que o público vai se deparar logo em seguida.

Livremente inspirado em “The Sons of Katie Elder” (1965), um dos clássicos do faroeste dirigidos por Henry Hathaway (1898-1985) — é de sua lavra o “Bravura Indômita” protagonizado por John Wayne (1907-1979) na pele do inesquecível Rooster Cogburn em 1969, um dos melhores filmes de todos os tempos, com o qual Wayne ganhou seu Oscar de Melhor Ator no ano seguinte —, o longa de Singleton também flutua no transcurso de seus longos 109 minutos entre o plano que o quarteto de cafajestes há de traçar para botar na cadeia o grande vilão da história, muito mais perigoso que eles, que não são, como já se disse, nada santos. “Quatro Irmãos” poderia ser apenas mais uma narrativa algo grudenta e um tanto presunçosa, não fosse o talento do diretor para desenvolver duas subtramas em momentos-chave do longa, envolvendo Jerry e Jack. Ligando essas duas figuras indecorosamente obscuras, Victor Sweet, o gângster nada doce do adorável Chiwetel Ejiofor, uma presença sempre maiúscula.

Muitas vezes, me flagro pensando sobre o porquê inexplicável de certas coisas. Nesse filme tolo a uma análise mais ligeira, John Singleton oferece a sua audiência uma pletora de argumentos para saudáveis discussões, mas morre ainda moço, com tanto por dizer. O reconhecimento que lhe faltou em vida, de que Spike Lee, numa geração intermediária, goza com todo o mérito, virá algum dia? Arrisco-me a dizer que Singleton não se importaria em receber as flores já depois de morto; contudo, também me atormento em sentir por ele o esquecimento a que todos nós teremos de nos sujeitar. “Quatro Irmãos” foi uma boa tentativa desse diretor tão dono de si quanto a permanecer na memória coletiva do público, uma fera voraz que se alimenta da glória de seus artistas.


Filme: Quatro Irmãos
Direção: John Singleton
Ano: 2005
Gêneros: Ação/Crime
Nota: 8/10