Em “Calibre” (2018), um homem se encontra numa quadra da vida em que, meio oprimido por todas as responsabilidades de ser pai, malgrado não tenha ideia sobre o prazer que essa nova condição pode lhe proporcionar, começa a sacudir sua história, como uma se faz com uma mala cheia demais de objetos sem valor, à cata de qualquer memória que possa justificar a viagem. O personagem de Jack Lowden, protagonista do filme de Matt Palmer, dá a impressão de estar um tanto deslocado frente à importância do caminho pelo qual se decidiu, se é que decidiu alguma coisa. Por essas e outras, aceita sem tergiversar o convite de Marcus, de Martin McCann, para uma caçada nas Terras Altas da Escócia, no noroeste do país, mesmo sem saber atirar e sequer demonstrar o mínimo gosto pela atividade. Conforme o enredo avança, vai ficando cada vez mais claro que sua vontade é apenas satisfazer o amigo, que não via há quinze anos.
A chegada dos dois à cidadezinha escolhida por Marcus marca o início do segundo ato do filme. Retratando as situações-clichê em tramas como essa — os forasteiros com dinheiro para gastar à vontade (Marcus em melhor situação que Vaughn, que se diga), tão bem vestidos e aparentemente sofisticados que entram no único bar da região e logo são abordados por mulheres bonitas e desinibidas além da conta —, o roteiro de Palmer escapa da mesmice ao apresentar Logan, o líder do vilarejo, como um sujeito afável e sensato, que se interessa verdadeiramente em reerguer o lugar em que vive (e talvez essa seja a única razão de tanta gentileza com os visitantes). O personagem de Tony Curran não simpatiza nada com a caça esportiva, mas não tem escolha: ou condescende, ou o povoado submerge de vez. Os amigos usufruem o último fim de semana de solteiro de Vaughn, e Marcus sempre parece se divertir muito mais. Depois de uma noitada de bebedeira dos dois, além de drogas e sexo para Marcus, este desperta na manhã seguinte ávido por levar Vaughn para o campo a fim de verificar o que seus rifles vão lhes trazer.
Ainda que não se preste a desempenhar a função de filme para refletir, “Calibre” sugere nas entrelinhas interessantes pontos de vista do diretor acerca de assuntos como a livre venda de armas, alcoolismo, abuso de drogas, além dos perigos de uma amizade em que um dos lados tem muito mais peso que o outro e o deixa sempre em franca desvantagem, sem saída, raciocínio que permeará a trama até o fim, quando o desfecho resolve a questão para Vaughn definitivamente — pelo menos no que diz respeito a Marcus. Inconscientemente, Vaughn parece rejeitar tudo o que o amigo lhe oferece, seu estilo de vida, seus hábitos, sua dependência, sua depravação, mas há alguma coisa em Marcus que o encanta, que o enfeitiça, que o idiotiza.
Mesmo com alguns indícios de que aquilo tem tudo para dar errado, a caçada começa. Obedecendo às instruções de Marcus, Vaughn é o primeiro a atirar e, efetivamente acerta alguma coisa. Na sequência, desconfiam de que a bala teve um destino que não deveria, o que se confirma quando ouvem um homem chamar pelo filho, Sammy. Vaughn chega ao cadáver antes, mas o pai de Sammy, irmão de Logan, os encontra, ao atirador e ao menino morto. Pensando que liquidaria a fatura, Marcus alveja o homem no peito. Agora não há mais capitulação possível: Vaughn e Marcus são dois homicidas frios, mormente depois do que resolvem fazer com os corpos, o que é o começo da ruína para a dupla. Algum tempo depois, Logan dá pela falta do irmão e do sobrinho, organiza uma busca munido de cães farejadores e chega ao lugar onde os dois foram enterrados. Marcus, enfim, é vencido pela força dos acontecimentos, e a frieza de sua personalidade doentia fraqueja: num laivo de humanidade, ele tem medo e se trai, fugindo dali e, por conseguinte, assumindo sua culpa. Vaughn o acompanha. Eles tentam se livrar da multidão furiosa que os persegue pelas estradas vicinais que margeiam o bosque, enquanto desviam dos tiros que chovem sobre os dois, mas um dos projéteis atinge o tanque do carro. Eles saem do automóvel e correm para dentro da mata, encarniçados pelos cães, que os alcançam.
“Calibre” se conduz para o encerramento perverso lembrando o eixo central do argentino “O Cidadão Ilustre” (2016), dirigido por Gastón Duprat e Mariano Cohn, que por sua vez baseia-se em obras máximas da filosofia, como o clássico “O Mundo como Vontade e Representação”, publicado em 1818, do alemão Arthur Schopenhauer (1788-1860). No livro, Schopenhauer, um dos pensadores que se celebrizaram pelo pessimismo, ao lado do dinamarquês Soren Kierkegaard (1813-1855) e do também alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900) — malgrado nunca tivesse passado por graves apuros de dinheiro e fosse reconhecido como grande intelectual que era, sorte que os outros dois não tiveram, ou de que só passaram a gozar à custa de muito empenho —, defende a ideia da vida sob a forma de uma vontade de vida, isto é, a vida seria uma mera prospecção do homem acerca de seus desejos mais obscuros. O homem não sabe querer, pois ao querer já espalha destruição por todo lado, e, portanto, há que se negar toda vontade, mesmo (ou em especial) as que, aparentemente, possam induzir a supostas boas intenções. Ou seja, nunca ceder à tentação de desejar reviver momentos da vida já relegados a um passado distante, por mais felizes que pareçam, como o reencontro com um grande amigo. A vida muda. As pessoas mudam — ou se revelam. Não entender isso pode implicar em consequências, na mais suave das hipóteses, indesejáveis. Na mais austera, mortíferas.
Filme: Calibre
Direção: Matt Palmer
Ano: 2018
Gêneros: Suspense
Nota: 9/10