Os fãs ficarão encantados e quem não é fã deveria dar uma chance a esse filme que acaba de chegar à Netflix Murray Close / Lions Gate

Os fãs ficarão encantados e quem não é fã deveria dar uma chance a esse filme que acaba de chegar à Netflix

Por mais paradoxal que possa soar, distopias se prestam a um alívio para espíritos menos conformados com o caos que reina no mundo desde o princípio dos tempos. A desordem fundamental que perpassa a vida do homem na Terra ainda não alcançou o estado de tétrico refinamento exibido com ostentação em produções de todos os gêneros, o que não quer dizer, definitivamente, que nossa situação seja confortável, ou mesmo admissível. Se até o presente momento não chegamos ao fundo do poço moral e econômico que nos aguarda e nos atrai, como a serpente que enfeitiça o camundongo e o devora sem ao menos ter de dar o bote, é só porque alguma força superior se compadece de nós, se penaliza dos infelizes já alijados do mínimo de que se necessita para uma existência suportável e permite que sigamos cada qual na sua agonia até nos colha a morte, única solução para tantos daqueles há muito tomados pelo desalento e pelo desespero. De quando em quando, tudo o que a velha musa canta tem de cessar; nessa hora, passamos a nutrir novos anseios, a nos queixar de outras carências e a roda viva das humanas misérias se perpetua como o esperado.

A luta pela sobrevivência impele-nos a assumir uma postura mais agressiva diante dos outros e esse personagem não demora a ser incorporado à nossa natureza, com a providencial ajuda das várias dificuldades que se agigantam nos cenários extremos em que a vida, caprichosa e vingativa, transforma-se numa arena onde se chega para matar ou para morrer. Indivíduos são esbulhados de seu arbítrio e de sua sensibilidade e se convertem num prolongamento da consciência coletiva, não pensam mais pela própria cabeça e veem-se obrigados a se submeter a expedientes os mais vis, não por covardia, mas por não poderem contar com ninguém. Dispondo de um orçamento nababesco, elenco afinado e uma história que consegue se manter de pé a despeito de incoerências pontuais, Gary Ross faz de “Jogos Vorazes” (2012) o princípio de uma saga que se prolonga por mais três longas, em grande parte mérito de uma estrela aplicada, que dava indícios mais e mais evidentes de que iria longe.

A ficção científica é o gênero de que o cinema se vale com mais força para tecer suas muitas elucubrações filosóficas acerca do destino nebuloso do homem, e em “Jogos Vorazes” não é diferente. O roteiro de Ross, Billy Ray e Suzanne Collins, autora dos livros transpostos para a tela, fala de nações da América do Norte aniquiladas depois de uma hecatombe — um conflito nuclear, uma guerra civil que foi tomando proporções incontroláveis e se espraiou por todo o subcontinente ou “apenas” o resultado da incúria de governos hábeis em misturar incompetência e psicopatia? — que se reagrupam num bloco coeso, Panem, administrado por um tal Capitólio (qualquer semelhança com a realidade, definitivamente, não é mera coincidência) e arranjado em doze distritos. O diretor vai dotando a narrativa desses elementos que conduzem a inferências políticas cujo significado varia ao longo das quase duas horas e meia, um tempo de projeção excessivamente longo a despeito da unidade da trama. Na sequência, o espectador conhece do que se trata a competição mencionada no título: cada distrito deve indicar dois tributos, uma garota e um rapaz que irão lutar até a morte num picadeiro, como faziam os gladiadores da Roma antiga.

Ross conserva a aura de fábula apocalíptica da pena de Collins, girando em torno de como os dois tributos do Distrito 12, o mais pobre, se comportam ao longo do processo de preparação para o confronto do qual deve sair um só vencedor. Até que o filme comece a engrenar de fato, apontando para a fase mais sangrenta do torneio, Ross investe no romance improvável de Katniss Everdeen, eternizada por Jennifer Lawrence e seu brilho habitual, e seu adversário, Peeta Mellark, de Josh Hutcherson. Claro que até que eles percebam que foram feitos um para o outro — o que invalidaria o espetáculo macabro que têm de protagonizar —, passam por uma bateria de testes muito menos óbvios e igualmente perversos, a começar pelas aparições no talk show comandado por Caesar Flickerman, papel de um Stanley Tucci que sempre rouba a cena e aponta para o desfecho meio enigmático, que a sequência esclarece em alguma medida.


Filme: Jogos Vorazes
Direção: Gary Ross
Ano: 2012
Gêneros: Thriller/Ficção científica/Aventura
Nota: 9/10