A despeito da força da história, um filme tem o condão de arrastar multidões aos cinemas — ou de manter cada espectador grudado no sofá diante da televisão por mais de duas horas — também por causa de detalhes técnicos, mínimos, talvez detectáveis apenas por olhos muito bem treinados, que acabam fazendo toda a diferença.
Em “1917”, Sam Mendes subverte alguns chavões ubíquos dos filmes de guerra, dispensando as tantas pirotecnias tecnológicas de que a maior parte dos diretores tanto se envaidece. O roteiro, de Mendes e Krysty Wilson-Cairns, se estende sobre um episódio controverso durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Tomando por base a história que o avô lhe contara, Mendes elabora uma odisseia sólida, como o relato que a fomentou — e nem poderia ser diferente. Nascido em Trinidad e Tobago e descendente de portugueses presbiterianos da ilha da Madeira, Alfred Hubert Mendes (1897-1991) se destacou como escritor, um dos mais proeminentes do Caribe no século 20. Contando com uma produção literária sucinta, mas brilhante, Alfred Mendes foi mandado a uma das inúmeras frentes de batalha entre a Inglaterra e a França, britânicos e alemães a alguns quilômetros uns dos outros, pouco depois de completar vinte anos, em 1917. A partir daí, Sam Mendes entra com sua fantasia sofisticada, sob a forma dos cabos Blake, vivido por Dean-Charles Chapman, e Schofield, de George MacKay. Os praças são acordados depois de um sono breve e ficam sabendo que foram designados para uma missão tão honrosa quanto absurda.
Em mais uma prova da sucessão de insânias que colhe o homem ao longo de uma guerra, o diretor revela do que se trata. Blake e Schofield são informados de que em outro posto de combate, não muito longe, mas nem tão perto, uma das tropas do Reino Unido que combatiam a Alemanha, em que o irmão de Blake serve, havia programado uma ofensiva para dali a pouco, a fim de encurralar os destacamentos germânicos. Mas os planos mudaram. A equipe de inteligência estudara melhor o caso e chegara à conclusão de que tudo não passa de uma tocaia dos alemães, que pode redundar num massacre para os britânicos. Como as linhas de rádio estão desativadas, resta aos personagens de Chapman e MacKay ir até lá, a pé, para não serem avistados pelos radares, a fina flor da tecnologia bélica para a época, e avisar que o ataque estava sendo abortado. Mas para que isso aconteça, terão, por óbvio, de primeiro chegar a salvo depois de uma jornada por uma faixa de terra plena de riscos.
Seguindo a tendência de produções como “O Resgate do Soldado Ryan” (1998), dirigido por Steven Spielberg, e “Apocalypse Now” (1979), de Francis Ford Coppola, e os amalgamando, “1917” descreve com realismo impressionante a barbárie de pelotões ricamente armados em disputa, e que o resultado desse banho de sangue passa longe dos livros de história e mesmo de documentários que esmiúçam a relação nada civilizada em que poder, política e Forças Armadas se dão as mãos e marcham unidas, passando por cima da frágil sensatez.
Uma vez que filmes sobre a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) parecem já ter esgotado o filão, a exemplo do já mencionado “O Resgate do Soldado Ryan”, “Bastardos Inglórios” (2009), farsa surpreendentemente cômica de Quentin Tarantino, e “Dunkirk” (2017), levado à tela por Christopher Nolan, o melhor de todos, foi uma sacada e tanto Mendes ter tirado da cartola a história que lhe contou o avô. Injustamente vítima de acusações como “hermético”, “desrespeitoso”, “leviano”, o filme leva até as últimas consequências o propósito inicial de registrar o máximo de imagens sob o expediente da tomada única que conseguisse, atingindo o estado da arte com a proposta e recordando produções recentes que tornam seu mote ainda mais estimulante precisamente pelo uso da técnica, a exemplo de “O Regresso” (2015), dirigido pelo mexicano Alejandro González Iñárritu, e “Pieces of a Woman” (2020), do húngaro Kornél Mundruczó, e clássicas, casos de “Festim Diabólico” (1948), de Alfred Hitchcock, e “A Marca da Maldade” (1958), de Orson Welles.
Ajudado pela fotografia premiada de Roger Deakins, colaborador assíduo de Denis Villeneuve e dos irmãos Coen, Sam Mendes apresenta sua versão para um evento desconhecido, como tantos ao longo da História, dando a seu trabalho o caráter de épico de guerra, realçado pela conduta heroica dos personagens centrais, dois pacifistas completamente deslocados em meio a um cenário em que não se reconhecem, cuja monstruosidade, todavia, não lhes aparta do que são em essência, aludindo a “Até o Último Homem” (2016), mais uma obra-prima que ilumina zonas sinistras da alma humana, uma especialidade de Mel Gibson.
O elenco afinado, que reúne de Colin Firth a Mark Strong, passando por Benedict Cumberbatch e Andrew Scott, em sequências em que a precisão dos movimentos importa tanto como a própria história, é mais um dos incontáveis predicados do filme, que tinha tudo para morrer na praia. Sam Mendes, um dos cineastas mais relevantes de seu tempo, foi além da imaginação em “1917”.
Filme: 1917
Direção: Sam Mendes
Ano: 2019
Gêneros: Guerra/Drama
Nota: 9/10