Filme hipnotizante com Angelina Jolie, na Netflix, é um soco na cara que continuará queimando por dias Divulgação / Universal Pictures

Filme hipnotizante com Angelina Jolie, na Netflix, é um soco na cara que continuará queimando por dias

Clint Eastwood é um dos poucos que conhecem a fórmula que lhe permite brincar com os sentimentos de suas plateias. Desde “Breezy” (1973), Eastwood foi se deslocando cada vez mais do proscênio para os bastidores, uma evolução que lhe tomou ao menos três décadas até que se estabelecesse como o cineasta brilhante que é hoje, cujo marco é definido pelo lançamento de “Menina de Ouro” (2004), produção a qual arrebatou os Oscars de Melhor Filme; Melhor Diretor; Melhor Atriz, para Hilary Swank; e Melhor Ator Coadjuvante, para Morgan Freeman; e constituiu um jeito sem igual de fazer cinema, em que o durão profissional, o machão americano dos faroestes de Sergio Leone (1929-1989) cede lugar ao homem sensível, ainda inquebrável, mas que sofre — e como! — com suas próprias tragédias pessoais e com a dos outros. O diretor conduziu essa transição pautando-se pela urgência quanto a se adequar às novas inúmeras visões de mundo que se iam impondo com o passar de tantos anos, provando-se, antes de qualquer outra coisa, um homem de seu tempo. E ele parece cada vez mais longe de se dar por satisfeito.

Em “A Troca” (2008), o diretor dá mais uma prova de sua generosidade artística e fornece todo o material para que Angelina Jolie brilhe na pele de uma mãe cujo filho de nove anos desaparece repentinamente e tem de lidar com a dor de experimentar o pouco-caso da polícia. Jolie, por seu turno, corresponde e mostra-se muito à vontade como Christine Collins, catalisando toda a revolta, o desespero, o inconformismo de uma mulher que se percebe a mola mestra de uma engrenagem pérfida, de que a polícia de Los Angeles — decerto a mais ineficaz e corrupta do mundo, em se tomando por parâmetro o que dizem dela os filmes —, se aproveita a fim de limpar sua barra. Conforme se denota de sua performance, Collins nem se incomodaria de prestar-se a tal função, desde que reouvesse Walter, o seu Walter. Mas o menino que as autoridades encontram em DeKalb, no nordeste de Illinois, e que o capitão J.J. Jones, de Jeffrey Donovan, quer lhe empurrar não é quem ela esperava.

Baseado numa história real passada em março de 1928, o roteiro de J. Michael Straczynski pontua detalhes importantes quanto a fazer o público cada vez mais imerso no drama de Collins. Walter, o verdadeiro Walter, personagem de Gattlin Griffith, é sete centímetros mais alto que seu sósia, papel de Eddie Alderson. A medida que a história toma corpo, Eastwood deslinda outros elementos fundamentais quanto a tornar essa a versão que de fato interessa, sem margem para tergiversação ou ruído: o garoto não sabe a que carteira se senta na classe da senhora Fox, de Pamela Dunlap, e seu histórico odontológico não corresponde aos registros do doutor Earl Tarr, interpretado por Peter Gerety. Ainda assim, Jones insiste na farsa, com tal empenho que Collins vai parar num hospital psiquiátrico, onde se depara com casos semelhantes ao seu, de mulheres que ousaram não se sujeitar ao arbítrio da polícia em episódios que variavam de abuso sexual de prostitutas a chantagens malsucedidas. Enquanto isso, figuras como o reverendo Gustav Briegleb, com John Malkovich numa participação afetiva e crescente, e o abnegado detetive Lester Ybarra, de Michael Kelly, se encarniçam na história, até que o clímax, que leva Ybarra a uma granja em Winesville, na Califórnia, se anuncia sem clemência.

Aos 92 anos recém-completados, Clint Eastwood, um dos melhores diretores em atividade, refina-se a olhos vistos, dia após dia, literalmente desenterrando tramas perdidas do cotidiano ordinário dos Estados Unidos e dando-lhes a aura de enredos grandiosos a partir de minúcias como fotografia, aqui assinada por Tom Stern, e edição, de Joel Cox e Gary D. Roach. Nunca se poderá dizer se Eastwood tardou demais em se lançar na carreira de diretor, aos 43 anos; o fato é que sua maturidade corre em paralelo com a cordura com que é capaz de apreciar eventos como o que se desenrola em “A Troca”, sem vieses de nenhuma ordem — o que Dirty Harry certamente não faria. Ao escarafunchar a podridão do sistema, quase um século atrás, Eastwood se revela um investigador social de mão cheia. E parece que ele está apenas começando.


Filme: A Troca
Direção: Clint Eastwood
Ano: 2008
Gêneros: Drama/Policial/Suspense
Nota: 8/10