O espírito humano, cheio de esconderijos, de lugares que muitas vezes nem nós mesmos conseguimos acessar, vai acumulando as muitas experiências pelas quais passamos ao longo da vida, memórias que acabam por nos servir, de um jeito ou de outro, em algum momento, a fim de que possamos manter a salvo a integridade mental. A jornada do homem sobre a Terra é plena de surpresas, eventos inesperados que o colhem, trazendo em seu bojo ora prazer, ora situações infaustas, e mesmo sabendo de tudo isso, a gente não deixa nunca de esperar pelos insólitos da vida, ansiando, por óbvio, que nos sejam doces. Os dilemas existenciais, tão comuns na vida do mais ordinário dos ordinários, nos tiram do prumo ao se prestarem como uma espécie de prova de fogo, a fim de nos fazer descobrir onde somos capazes de chegar em busca de um ideal, de uma convicção, de um sonho. A natureza humana necessita que lhe deixem abandonar a dureza do mundo da matéria, a austeridade da existência, e rumar para uma dimensão em que tudo soe mais genuíno, paradoxalmente mais racional, em que a vida mesma tenha mais significado — ainda que por um tempo já previamente estabelecido, malgrado o cenário exista somente para aqueles que o podem conceber. A vida para o homem é um constante desafio, sobre o qual tem de se debruçar todos os dias a fim de saber se está fazendo mais acertos ou se está, covardemente, se entregando ao aconchego da falha. Os filmes listados, disponíveis na Netflix, são registros cirúrgicos de nosso tempo.
Imagens: Divulgação / Reprodução Netflix
Ulises não é nenhum personagem de Homero, nem faz parte de “Odisseia” alguma, mas bem que poderia. O protagonista de “Ya no Estoy Aquí” tem sua jornada própria, uma trajetória em busca de autoconhecimento e descobrimento do mundo, honra, afirmação. O garoto de 17 anos, como qualquer um em Monterrey, nordeste do México, gosta de roupas largas, cabelo extravagante, penduricalhos, estética que, sob uma análise ligeira, remeteria aos rappers nova-iorquinos. No caso de Ulises, o moleque é um digno representante da cultura regional, hispânico-latina, mais precisamente. Ele sonha em se tornar um expoente da Kolombia, um subtipo da cúmbia, ritmo surgido no país sul-americano, com algumas variações de tempo. Ulises também, como um adolescente comum, anda em companhia dos amigos, e aí é que está o problema. Numa dessas, conhece criminosos de verdade, se mete em confusão com eles e sua única saída é imigrar, no bagageiro de uma van, para os Estados Unidos. Lá, se vira como pode, dançando no metrô a fim de defender um trocado e dorme de favor na água-furtada da garota sino-americana, também uma intrusa no mundinho abafado da América, interessada nele, mas não correspondida, porque Ulises não fala inglês, e tampouco a moça entende espanhol. O filme de Fernando Frías de la Parra é um portento de beleza, de originalidade, com seus planos ora disparados, ora lentos, quase se arrastando, tudo friamente pensado, enquadramentos quase sempre muito abertos, a fim de conferir à cena a sensação de distância, de exclusão. O resultado de tamanho esmero é um genuíno tratado antropológico sobre a juventude em países periféricos da América Latina, sobre a resistência cultural nesses rincões perdidos, mediante a ótica do oprimido, sem jamais se permitir concessões ao vitimismo. Ulises é digno até a raiz do cabelo descolorido, mesmo quando reconhece a derrota e se submete. Um herói, portanto.
O diretor Alan Yang reconta a história do sonho americano à luz das aspirações de um jovem imigrante taiwanês procurando melhorar de vida na tão falada América. Para isso, ele deixa seu país, visando a ascender na fábrica em que trabalha e se casar com a filha do chefe, e se muda para a Nova York da década de 1970. Transcorrido meio século, tudo o que esse rapaz ambicioso e destemido consegue, porém, é um casamento desfeito, muitas amarguras ao longo da jornada no Ocidente e uma relação espinhosa com a filha.
Contando três histórias sem concluir nenhuma, “Adú” traz propostas de reflexão. O filme é político ao expor problemas cotidianos da vida de um menino que tenta deixar a África com a irmã em busca de uma vida melhor, mas também filosófico e emotivo, quando aborda os dramas particulares de Sandra e o pai Gonzalo, e ainda discorre a respeito da truculência da polícia ao querer dar um pouco de sentido a tamanha desordem. Filme cabeça, filme de autor, filme inteligente, como preferirem, mas filme bom e comovente.
“A Sun” começa de maneira brusca e, assim, o espectador já fica esperto quanto ao que pode esperar do drama taiwanês do diretor Chung Mong-hong. Mas que ninguém se desestimule: o enredo é todo permeado por respiros cômicos — e eles são mesmo necessários. A pobreza, ainda que num país rico, é implacável, e ai daquele que pense que pode subverter o estabelecido. Contudo, seria tolo afirmar que o risco social é o responsável por fomentar a criminalidade; o fato é que a alma de todo homem tem sua face sombria — e cada um deve mantê-la sob controle. E controle — e, por extensão, autocontrole —, é uma ideia cara aos orientais. Um pai de família honrado não se prestaria a aturar os deslizes de caráter por parte de um filho, muito menos seus delitos. Ao tomar conhecimento da prisão de A-Ho, A-Wen exige que o caçula seja sentenciado com uma pena severa, o que revolta sua mulher, Qin, mãe do rapaz. A partir daí, o que se segue é a total desintegração do que até tão pouco tempo era um lar (e uma família). Ainda que haja uma ou outra tentativa pontual de contornar a questão, o casal, juntamente com o filho mais velho, pressentem que nada vai voltar ao ponto anterior à ruptura. A vergonha que todos sentem pelo destino de A-Ho, tornado ainda mais significativo numa sociedade que valoriza sobremaneira a austeridade da conduta social, o constrangimento, o remorso, tudo converge para que não consigam se encontrar outra vez. O sol pode até ser o que há de mais justo no mundo, mas só pode iluminar e emprestar seu calor a ambientes que se abram para ele. Do contrário, fica eternamente preso em meio à nuvem de ignomínia e pequenez que flutua sobre a natureza do homem desde sempre.
A sutil diferença entre terror e horror que se estabelece no cinema é flagrante no trabalho de estreia do diretor Anthony Mandler, responsável pelo registro de clipes de estrelas pop como Rihanna, Beyoncé, Taylor Swift e Shakira. Em “Monstro”, o título leva o espectador mais apressado a crer que o enredo se refira a uma narrativa fantasiosa repleta das criaturas bizarras que todos conhecemos. Bem, há seres monstruosos aqui, mas são todos de carne e osso — e podemos cruzar com eles a qualquer momento. No roteiro, adaptado da biografia homônima de Walter Dean Myers, o protagonista chama-se Steve Harmon, um garoto negro de 17 anos que mora no Harlem, subúrbio barra-pesada de Nova Iorque. Steve não tem nada a ver com os demais rapazes da vizinhança: é um estudante aplicado de um colégio de elite em outro bairro, tem a carreira de cineasta como seu objetivo maior e vive no seio de uma família unida que o ama. Ao fazer um favor para a mãe e ir até a mercearia perto de casa, acaba sendo implicado num roubo violento, que resulta na morte do dono da loja. Steve é preso em flagrante e imediatamente encaminhado a uma penitenciária de segurança máxima, onde permanece aguardando julgamento. Sua vida, como não poderia deixar de ser, é tomada por uma espécie de torvelinho em que quanto mais tenta se desvencilhar de todas as frágeis acusações a que é confrontado, mais é retido para o centro do caos de que sua vida parece que não vai sair. Relato o seu tanto furioso — mas também pontilhado de argumentos burilados ao estado da arte – contra uma justiça completamente viciada, que se deixaria levar pela voz rouca das ruas ao julgar alguém com base em indícios que não resistem a uma análise fria das circunstâncias e, por óbvio, racista, “Monstro” centra fogo na atuação da escrupulosa advogada do personagem principal, que desde o início acredita na versão de seu cliente e, dessa forma, se esmera em defendê-lo, convicta de que, ao cabo de toda aquela tortura, Steve há de receber um veredicto de fato justo, muito mais convicta do que o próprio Steve, aliás. Uma direção que opta por um tom propositalmente confessional, aliada a atuações formidáveis e aspectos de natureza técnica que se revelam essenciais — como o pop-up da câmera nos diversos personagens enquanto o julgamento do protagonista avança —, fazem de “Monstro” um filme de autor, um filme de formação, um filme indispensável. A divulgação massiva de produções como essa nunca resta debalde: são necessários menos de cem minutos para se ter uma visão renovada acerca da vida.