Novo filme da Netflix é um banquete para a alma Divulgação / Netflix

Novo filme da Netflix é um banquete para a alma

Ainda um grande mistério, para a literatura médica e para o homem, o cérebro e suas doenças, que impactam corpo e alma em medida equivalente, despertam a curiosidade de todos. As psicopatias, os males da alma, se impõem sobre a vida de uma pessoa, variando de intensidade conforme o modo como o paciente porta-se no mundo, o que interfere de maneira direta no tratamento, além, claro, de detalhes no que se refere aos hábitos alimentares, quanto tempo se gasta no sono, quanto exercício físico se pratica. Uma rotina pautada pelo consumo excessivo de álcool, gorduras trans, frituras, açúcar refinado, cafeína, sal, o tabagismo, o uso de outras drogas, tudo isso, além do famigerado estresse, contribuem para minar a saúde, inclusive a mental. Mas tanta paranoia — que já é mais um sintoma de doença mental — não desencadearia mais prejuízo que benefício?

É realmente um desafio preservar a frágil saúde do espírito, muito especialmente nos tempos cada vez mais sombrios em que vivemos, tempos capazes de piorar uma condição psíquica já comprometida, sem dúvida. Talvez mesmo sem querer, “Os Olhos Negros de Marilyn” tenda a glamourizar um assunto sério, que tomado por brincadeira quando deveria suscitar abordagens mais assertivas, acaba prestando um desserviço à causa e aos 720 milhões de doentes mentais em todo o planeta, cerca de 10% da população da Terra. Por outro lado, é simplesmente impossível levar tudo a ferro e fogo, e como rindo castigam-se os costumes, louve-se a intenção do diretor italiano Simone Godano.

Atribuam-se todos os defeitos a Godano e seu trabalho, menos o de tentar dar algum charme artificial ao sofrimento psíquico ou a seus personagens, até porque eles são perfeitamente capazes de aparecerem por si sós. Por exemplo, para Clara, a mentirosa patológica e misantrópica, com evidentes dificuldades de socialização mesmo depois de inscrita no programa de assistência a indivíduos com alguma forma de desvio de personalidade, incentivado pelas próprias autoridades italianas, é sempre “depois de mim, o dilúvio”. A personagem da excelente Miriam Leone continua presa de um egoísmo que a cega e que não lhe permite enxergar que a terapia, alternativa a uma temporada na cadeia após ter ateado fogo na casa onde morava com o marido, é sua única saída. Tudo leva a crer que o incêndio, provocado a partir de um cigarro que permaneceu aceso depois de um dia de muito trabalho, foi mesmo involuntário, contudo a maneira como Leone apresenta sua personagem deixa claro que, a despeito de seu temperamento um tanto desleixado, Clara necessita estar ali, em meio àquelas outras pessoas pouco comuns, embora faça de tudo para convencer os responsáveis a lhe darem alta, principalmente agora que a carreira parece querer engrenar de novo. Dentre os quais, Diego, o ex-chef de cozinha de Stefano Accorsi, que fora parar ali por literalmente virar a mesa do restaurante onde trabalhava, e agora tem de se submeter a regras meio inflexíveis se quiser encontrar a filha, por poucos minutos e acompanhado de uma assistente social. Nem Clara nem Diego se interessam pela vida um do outro, mais uma característica bastante típica entre portadores de psicopatias em diferentes níveis, mas que também esconde uma espécie de estratégia de defesa, como se uma vez que alguém que se confessa cioso do outro, começasse a se assumir mais fraco. Mesmo assim, essas almas gêmeas no tormento acabam enxergando um ponto de contato que as une indelevelmente, o gosto pela comida, que descobrem depois de uma experiência pouco apetitosa.

Para dar continuidade ao mote escolhido, Godano dobra a aposta na natureza manipuladora, mas inegavelmente criativa de Clara, que inaugura um perfil nas redes sociais com uma foto da atriz americana Marilyn Monroe (1926-1962), sugerindo que alguém como Marilyn decerto frequentaria o restaurante onde seriam servidos os pratos que apresentados pela página, plasticamente irretocáveis, mas nada saborosos, uma vez que, em sendo apenas imagens, Clara os confeccionara usando espuma de barbear e o próprio pé, no que é  encorajada por Diego. O uso pelo diretor do argumento das redes sociais como agentes de falseamento da realidade mostra um alinhamento com certas correntes de pensamento amplamente disseminadas nos anos 1940, e que ainda hoje se mostram acertadas, como a do sociólogo americano Harold Lasswell (1902-1978), que enunciava toda ação humana como uma resposta a estímulos externos, ou seja, não importava que nas fotos não fossem retratados pratos de verdade, comestíveis, desde que provocassem esse efeito, o de despertar o desejo por serem consumidos. A parceria aparentemente improvável dos dois protagonistas — Clara, envolvente e ardilosa; e Diego, impulsivo e ingênuo —, como azeite balsâmico para chocolate, oscila entre memórias e emoções, cada qual variando de intensidade por seu turno, dando ao filme, a despeito da elaboração do pano de fundo da doença mental, coberto pelo da culinária, o caráter de uma história de amor a princípio inverossímil, mas logo digerida pelo espectador.

Falando das coisas mais importantes da vida de um jeito simples, que disfarça à luz da comédia bem dosada, o filme de Simone Godano exalta o amor, mas igualmente a compaixão, a tolerância, o entendimento entre as pessoas. “Os Olhos Negros de Marilyn” não nega suas origens mediterrâneas e se desdobra num genuíno banquete para a alma do público.


Filme: Os Olhos Negros de Marilyn
Direção: Simone Godano
Ano: 2021
Gênero: Drama/Comédia/Romance
Nota: 9/10