Dance dance dance com o beat japonês

Haruki Murakami é um escritor modernista. Ele buscar retratar o mundo japonês contemporâneo, num confronto ainda que um pouco velado entre o zen-budismo, (ideologia tradicional influente na formação da sociedade) e o capitalismo japonês, com seu consumo sem limites. Para isso ele se vale da cultura pop. Pop no sentido deleuziano, em que elementos da cultura popular de massa, (no caso, os rocks e as baladas que tocam no rádio e filmes de segunda linha, por exemplo), são buscados para se levantar questões mais profundas. Essas questões não são necessariamente explicitadas no texto. Mas apenas insinuadas, criando várias camadas de entendimento que vão sendo reveladas conforme a capacidade cognitiva do leitor. A cultura de massa é apenas o fio da meada para introduzir e que conduz o leitor pelo labirinto de ideias.

Dance Dance Dance
Dance Dance Dance (Alfaguara, 496 pá­gi­nas), de Haruki Murakami

O protagonista é um escritor que não deu certo, pelo menos ainda, e aceita fazer qualquer tipo de trabalho escrito, na tentativa de achar um caminho literário e até mesmo um sentido de vida, no contexto social em que vive. Por viver nessa situação ele se identifica como um simples “limpa-neve cultural”, o que já dá demonstrações do tom sarcástico que permeia toda a obra. Em busca de respostas para suas indagações, o protagonista adentra um mundo misterioso, — e bizarro — em que o velho e o novo, o real e o alucinado coexistem: Num hotel recém-construído, o hotel velho que lhe deu lugar, subsiste nele com suas velharias estranhezas.

Em seu texto há um toque beat, uma pegada meio John Fante, despojado, um pouco amargo, mas sem ressentimentos (se é que isto é possível). Seus personagens não deixam de ser um pouco meio Arturo Bandini, e estão sempre numa posição de quase-equívoco, meio nonsense, com um humor cáustico mais sem escracho, criando situações que nos provocam uma ligeira cócega nos músculos do riso, mas que nunca dispara nosso riso por completo. Vamos lendo com o canto da boca meio repuxado, num sentimento de boutade.

Aliás, tenho a impressão de que a literatura asiática modernista, pelo menos essa que nos vem dos arredores do círculo de fogo do pacífico (China, Japão…), está muito contaminada pela literatura beat. Mo Yan, por exemplo, o chinês que levou o Nobel de Literatura de 2012, também é um puro-sangue John Fante em seu estilo de escrita. É claro que aqui cabe uma pergunta, que você pode enrolar e não precisa responder agora: Mo Yan levou o Nobel por seu desempenho literário, ou pela influência econômica da China? Ou pelos dois fatores?

Uma outra característica de “Dance Dance Dance” (Alfaguara, 496 pá­gi­nas), de Haruki Murakami, (e dessa literatura de que falamos) é um certo tributo ao realismo mágico latino-americano. Mas ao transpor as águas do pacífico, o nosso realismo mágico ficou mais bruto, com menos nuances de sutileza, mais bizarro. Em Juan Rulfo, por exemplo, quando caminhamos alguns dias com seu protagonista Pedro Páramo, do romance homônimo, somos levamos ao um sentimento de confusão. Pela linguagem sabiamente dúbia, pelo calor de brasa, pela sequidão da paisagem, pela vagueza sintomática dos habitantes, nos perguntamos de repente: Espere aí. Pedro Páramo está vivo ou morto? Em José J. Veiga, no romance “A Hora dos Ruminantes”, a pequena cidade de Manarairema é invadida por gado bovino em tal ajuntamento que não resta lugar para ninguém. Nem mesmo na sacristia da igreja. Mas o leitor foi sendo preparado pra situação, com outras pragas anteriores de menor monta. Essa praga de bois acontece quase como um fato natural. Quando Gabriel García Márquez, em “Cem Anos de Solidão”, nos descreve peixinhos, na umidade do ar, entrando pelas portas e saindo pelas janelas, ele já nos descreveu décadas de chuvas ininterruptas.

Já o realismo mágico de Murakami (e de Mo Yan) é num outro grau. É por assim dizer mais um “realismo alucinatório”. As cenas em que o protagonista encontra intacto dentro do Hotel Golfinho renovado o Hotel Golfinho demolido, com suas coisas velhas, inclusive um certo homem-carneiro (seria o equivalente do Sátiro da Mitologia Grega, ou do Fauno da Mitologia Romana?) me deu um certo desconforto. Continuei a leitura da cena, mas com a mão direita no rosto, lendo pelas frestas dos dedos, como se eu tivesse saído da penumbra para um ambiente de pleno sol. Achei exagerado e estranho, confesso. O mesmo sentimento que tive a primeira vez em que li a cena em que o pobre Gregor Samsa de Kafka, em “Metamorfose”, se transforma num asqueroso inseto.

Haruki MurakamiMas o sentimento de repulsa me levou a uma breve reflexão. O realismo mágico no Japão realmente não poderia ser o mesmo da América Latina. Apesar do zen-budismo, o Japão, é terra de tsunamis, samurais, ninjas, kamikazes e da máfia Yakuza. Aliás, a Yakuza é um dos elementos de tração que puxam e aceleram a trama deste romance. A gentileza percebida pelos turistas quando chegam ao Japão vai se desfazendo quando vê a dureza do relacionamento entre os nativos. O Japão teve a ideia espantosa de, levando em conta que o imperador tinha parte com o Divino, declarar guerra contra o resto do mundo. Os kamikazes se revelaram nesse contexto. Arrasados em 1945, construíram em poucas décadas uma das nações mais ricas do mundo. O realismo mágico latino-americano foi apropriado por Murakami, aclimatado às doideiras do lugar. Ficou meio ninja, do tipo em que o personagem rodopia feito pião e some na terra, ou roda os braços no ar e some sem deixar vestígios, feito hélice avariada de helicóptero. Coisas de japonês.

Foi então que percebi que o realismo mágico alcançou na Terra do Sol Nascente um novo patamar em “Dance, Dance, Dance”. Muito mais intenso. Não vou aqui fazer nenhum spoiler. Para conhecer o enredo, o leitor vai ter que de fato ler o livro. Mas posso lhe afiançar que não será nenhum sacrifício. Murakami é um escritor de extensas virtudes literárias. O texto é realmente agradável e eletrizante. E quando você pega, não quer largar nem para atender à namorada nova.