Eletrizante. Perigoso. Magistral. O filme que não possui superlativos suficientes para descrevê-lo Divulgação / Sony Pictures

Eletrizante. Perigoso. Magistral. O filme que não possui superlativos suficientes para descrevê-lo

Dizer que “Whiplash — Em Busca da Perfeição” é vibrante soa como lugar-comum. Sem precisar de muito mais que o básico — uma boa história, um bom elenco e uma direção precisa —, tudo no filme de Damien Chazelle remete o espectador à Era de Ouro de Hollywood, quando o cinema vivia o seu apogeu e o tempo passava mais devagar. A música, uma das manifestações artísticas mais próximas do homem, reflete essa placidez, esse glamour, que entram como a matéria-prima de uma verdadeira obra de arte sobre o relacionamento entre a humanidade e o som.

Em 2014, Chazelle parecia determinado a abordar um tema circunspecto como a relação delicada de um aluno de música e seu maestro à luz de alguma coisa nova, não apenas bela. Mesclando notas de suspense e crítica social, o diretor elabora a sátira perspicaz que questiona não só as dificuldades de se estabelecer como um grande artista, mas também se alonga habilmente no que toca a problemas do mercado de trabalho como um todo num mundo mais e mais selvagem. E de que maneira o bicho homem se comporta nessa conjuntura? Há uma medida para o sucesso? Esse sucesso depende apenas de nós mesmos, ou sempre precisamos da chancela de alguém? Enfatizando indagações dessa natureza, retóricas, conforme todos sabemos, “Whiplash” vai preparando o caminho de seu protagonista até o topo, uma montanha-russa de altos e baixos que reflete a trajetória do personagem central.

Vivido por Miles Teller, Andrew Neyman ensaia até tarde da noite na escola de música que frequenta em Nova York, uma das mais bem reputadas da América, e o som de sua bateria corta o silêncio dos corredores. Nesse exato momento, passa Terence Fletcher, o professor mais talentoso (e mais severo) da instituição, que rege a banda de jazz. Interpretado com o brilho costumeiro de J. K. Simmons, que lhe empresta essa capacidade de se emocionar sem mover um músculo do rosto, Fletcher para, entre incrédulo e maravilhado, dá suas instruções e vai embora, nitidamente desapontado. A estrela do personagem de Teller brilhou por um momento fugaz, mas se apagou tão depressa que ele sequer teve tempo de aproveitar sua chance. É nesse ponto que o espectador se derrete por ele, simpatia que recrudesce ainda mais ao se observar a reação de seu pai ao saber da história. Jim, de Paul Reiser, escuta tudo com o coração partido, sem se atrever a tentar convencer o filho de que ele pode ter dado importância exagerada ao episódio. O mundo já tem muita gente disposta a mentir para ele.

A música é plena de causos de instrumentistas, cantores, empresários, que se detestam uns aos outros e, não sem boa dose de sacrifício, conseguem se suportar, para o bem das carreiras e da própria experiência emotivo-sensorial da humanidade. O exemplo mais flagrante é, sem sombra de dúvida, o dos “Beatles”, cuja fase terminal é exposta com louvável desassombro em “Get Back” (2021), série documental dirigida por Peter Jackson. Fletcher se vale de exemplos como o dos os cinco rapazes de Liverpool para estimular seus pupilos a perseverar, deixando claro que quem pensa que a carreira artística, sobretudo na música, é feita de eventos felizes está fadado a ficar pelo caminho. O maestro quer o sangue de seus discípulos, e essa não é mera figura de linguagem: é esse sangue que mantém a paixão pela música pulsando em cada uma daquelas veias. A essa altura já membro da banda dirigida por Fletcher, Andrew entende isso rápido, e à medida que desabrocha para a arte que pretende abraçar, torna-se mais maduro também em todas as outras categorias de sua vida. No amor romântico, inclusive.

Andrew luta contra sua hesitação frente à existência, malgrado saiba de seu inestimável talento, e Teller tem o brilho que seu personagem demanda quanto a fazer essa incoerência se destacar no ponto certo, fazendo com que o baterista seja visto sob a forma mais natural num artista, homem comum que transcende sua frágil humanidade por meio do dom com que o próprio Deus lhe presenteou. O entendimento da vida de artista, da vida de músico, como algo grandioso, para cuja preciosidade vai despertando lentamente, contrasta com a natureza despótica e prepotente de Fletcher, e Chazelle trabalha a dicotomia entre seu protagonista e seu antagonista de forma a fazer a audiência se aperceber de que, na verdade, suas personalidades se complementam. O personagem de Simmons se equilibra todo o tempo na corda bamba da caricatura do sujeito que, embora domine como poucos o conhecimento com que ganha a vida, no fundo considera uma injustiça ter de repartir essa sua sabedoria com quem quer que seja. A técnica e a emoção refreada do ator é o que lhe permite transmitir essa tacanhez do maestro, cujo profissionalismo sobre-humano — sua qualidade mais contraditória, quase um defeito, uma vez que é um artista, mas um artista que julga a disciplina tão poética quanto um solo de piano — é o que atrai o público a si. Simmons empresta a Fletcher a certeza de que seu personagem é o fogo incômodo, mas necessário, intenso, que faz arder uma pedra bruta até que se torne um diamante.

As performances de Miles Teller e J.K. Simmons, rivais num duelo cerebral e comovente ao longo de 106 minutos, já fariam de “Whiplash — Em Busca da Perfeição” um filme singular, contudo elementos como a montagem de Tom Cross e, sobretudo, a fotografia de Sharone Meir coroam o filme com a aura do que Hollywood já produziu de melhor nessa seara. O desfecho, que condensa o espírito de toda a trama — acelerado, quente, sensual —, mostra que Teller, assim como Simmons, também merecia um Oscar. “Whiplash” acaba deixando uma sensação de cansaço físico, como se se estivesse voltando de uma noite inteira de festa, com dança e ótima música que poderiam não ter fim.


Filme: Whiplash — Em Busca da  Perfeição
Direção: Damien Chazelle
Ano: 2014
Gênero: Drama
Nota: 9/10