Os vampiros marginais de Paulo Scott Foto: Renato Parada / Divulgação

Os vampiros marginais de Paulo Scott

Os novos mitos, escreveu o pensador Edgar Morin acerca da sociedade moderna, deixaram o Olimpo para frequentar a vida cotidiana como produto das manifestações artísticas: o cinema, o teatro, a criação literária. Em “Voláteis”, romance de estreia de Paulo Scott que, 16 anos depois, ganha uma edição revista, o autor gaúcho repagina elementos da mitologia urbana e os incorpora na fórmula do thriller policial. Um submundo do crime, com ares noir, por onde circulam tipos sui generis cujas concepções e condutas se inspiram em lendas que vão do vampirismo aos snuff movies, passando pelo relato fantástico do labirinto do Minotauro.

A trama se articula a partir de quatro personagens. Fausto (um nome que, por si só, é muito sugestivo) vive de pequenos delitos, enquanto tenta afastar as desilusões que o passar do tempo impõe com a prática diletante do desenho ou se afogando na bebida. A única lealdade que lhe resta vem de Machadinho, um sujeito sem casa, sem rumo, coadjuvante de seus esquemas ilegais, que o admira pelo “dom de entrar e sair rápido” dos lugares que furta. Certo dia, durante um “serviço” num prédio, Fausto é surpreendido por Ângela, uma millennial de cabelo azul, naturalmente instável e impulsiva, que acabou de participar de uma fuga cinematográfica, depois de roubar uma moto. A garota busca esconderijo no loft de uma amiga e, com os policiais rondando a área, o velho gatuno acaba se refugiando com ela.

Os novos mitos, escreveu o pensador Edgar Morin acerca da sociedade moderna, deixaram o Olimpo para frequentar a vida cotidiana como produto das manifestações artísticas: o cinema, o teatro, a criação literária. Em “Voláteis”, romance de estreia de Paulo Scott que, 16 anos depois, ganha uma edição revista, o autor gaúcho repagina elementos da mitologia urbana e os incorpora na fórmula do thriller policial.
Voláteis, de Paulo Scott (Alfaguara, 168 páginas)

A questão é que a tal amiga quer vê-la bem longe. E só ao fim de uma acalorada discussão, permite que passem a noite entocados num cômodo superior. O confinamento, a princípio marcado pelo estranhamento, pouco a pouco se converte num inesperado início de amizade. Melhor dizendo, na parceria para a execução de roubo mais ambicioso. Na manhã seguinte, separam-se e, neste momento, entra em cena a quarta protagonista do enredo: Lucimar, uma fotógrafa renomada, que sofre de uma rara doença que faz com que sua pele seja vulnerável à luz do sol. Assim, vive protegida pela escuridão do apartamento, tendo o auxílio de uma assistente e convivendo com registros de um passado no qual teve um casamento com Fausto, que então se tornou um indecifrável elo sentimental. Será esse vínculo, aliás, que fará com que, no concatenar dos acontecimentos, tudo e todos confluam para ali: as manobras para a prática do plano, as contravoltas das relações pessoais, as intrigas de amor e de crime, as traições.

Scott conduz a narrativa através das interações de seus personagens principais, e destes com uma esquisita fauna de malandros, escroques, ladrões, atravessadores, drogados, brutamontes. Os diálogos imperam, sempre ágeis, marcados pela linguagem marginal, transgressora às convenções morais. Como num roteiro montado para vários protagonismos, cada ator direciona sua própria história, em ambientes e circunstâncias variadas, até se entrecruzarem e convergirem para um final surpreendente. Não por menos, fica a sensação de se estar diante da estrutura de um filme ou de um texto bolado para uma graphic novel. Um clima de urgência, parágrafos curtos e uma linha crescente de suspense.

Para além deste procedimento, há ainda outras possibilidades interpretativas fora do fluxo frenético, que costeia as entrelinhas. Comentários sobre discriminação racial (tema que o autor iria explorar com densidade em “Marrom e amarelo”) e exercícios de intertextualidade, que bebem da cultura pop à mitologia grega. Algo de Renfield, algo de Creta. Mesmo o mito do vampiro pode ser analisado pela perspectiva anímica, do drama existencial dos quem sugam o viço alheio, feito uma necessidade afetiva, feito uma prisão. Um relacionamento vicioso baseado na ruína de ambos os lados.

Morin definiu a relação entre leitor e personagem, no contexto da construção mitológica que se materializa da realidade e da ficção, como uma força de tensão em que há a interiorização do personagem no leitor, de modo simultâneo e complementar, segundo transferências incessantes e variáveis. “Voláteis” propõe esta experiência, com uma estratégia de conduta narrativa em alta voltagem, personagens instigantes e um apelo de imersão no universo criado da primeira à última página. A chave do enredo, porém, não está em Morin, mas numa frase de Paul Valéry: “Quase todos nossos desejos são criminosos em sua essência”. O que há de humano é sempre mais assustador que qualquer lenda.