Como a arte negra revolucionou a arte ocidental

O jazz é sempre lembrado para referir-se à importância da cultura negra no Ocidente. No Brasil e em todo o Caribe sua influência plasmou também a música e os ritmos dançantes: samba, salsa, merengue, mambo, reggae etc. Mas essa importância transcende para outras formas de expressão: poucas pessoas sabem que a cultura negra é uma das bases da visualidade moderna no mundo ocidental. De modo que não é fácil estimar com precisão sua gigantesca importância para a cultura no século 20. Especificamente, o efeito que a cultura africana teve sobre a pintura ocidental, com desdobramentos em todos os gêneros das artes plásticas, é no mínimo igual àquele exercido sobre a dança e a música. E talvez maior.

À luz da antropologia sabemos que as culturas primitivas nunca foram atrasadas em relação à nossa. O que a chamada “civilização”, até hoje, tem de específico é somente o grau tecnológico que lhe propiciou, entre outras maravilhas morais, o domínio completo sobre povos de tecnologia mais rudimentar. Cuja visão de mundo, entretanto, continha o germe de nossa própria revolução cultural. E. H. Gombrich postula que a história da arte não é uma história de progressos, mas uma história de ideias e concepções, apenas. E a concepção negra de arte, sendo diferente da nossa, abriu para o modernismo uma porta que parecia fechada.

A arte moderna surge com o impressionismo por volta de 1860-70, na França burguesa da belle époque, França que era uma das potências colonialistas europeias, no auge do liberalismo, e ainda centro da arte ocidental. Escritores notáveis como Herman Melville e Joseph Conrad notabilizaram-se como cronistas dessa época de contatos intensos com a alteridade. Obras de ficção como “Typee”, “Omoo”, “Lord Jim”, “Nostromo” e até a nave da diversidade que é “Moby Dick” são manifestações do processo de globalização que tornaria quase toda a África, partes da Ásia e Oceania bases da riqueza de umas poucas nações com armas de fogo. Porém a literatura ocidental sofreu apenas influência temática, ao contrário da música, da dança e da pintura. A razão para isso é que a maioria dessas culturas (senão todas) eram ágrafas: elas não utilizavam a escrita. O escritor sul-africano J. M. Coetzee reflete sobre o fenômeno em “O romance na África”, que constitui a Palestra nº2 de “Elizabeth Costello”: “O romance africano, o verdadeiro romance africano, é um romance oral”, diz o personagem e escritor nigeriano Emmanuel Egudu, explicando o motivo dessa tradição ser tão nova naquele continente.

Les Demoiselles d’Avignon, de Pablo Picasso, 1907

O primeiro grande artista que abandonou a civilização europeia para se refugiar entre povos remotos foi o holandês Paul Gauguin, o melhor amigo de Vincent van Gogh, que por sua vez encantou-se com a arte de outro povo exótico, o japonês. Gauguin Ilhou-se no pequeno Taiti, minúsculo arquipélago da Polinésia Francesa, no meio do oceano Pacífico. Foi também o primeiro pintor a transmitir o impacto de uma cultura primitiva em sua obra, se bem que ainda fosse um caso semelhante ao dos escritores: influência apenas temática, de superfície. Ou melhor: um efeito ético de repulsa dos padrões ocidentais, principalmente de beleza. Enquanto os pioneiros da antropologia estudavam esses povos em livros como “Primitive Art”, de Franz Boas, exploradores europeus menos sutis roubavam e comerciavam vestígios materiais dessas culturas. Muitos eram máscaras e esculturas trazidas de países como Nigéria, Guiné e Congo para constituir os acervos de museus em Londres, Berlim e Zurique, e que podiam ser negociadas livremente nos mercados de Paris. O primeiro artista de renome a se interessar por essas obras foi André Derain, que se juntaria a Henri Matisse para criar o fauvismo. Mas o artista que extraiu as possibilidades formais da arte africana para criar uma nova concepção da imagem no Ocidente foi Pablo Picasso.

Picasso nutria-se de três fontes essenciais: Henri Rousseau, que era um artista naïf, Paul Cézanne, espécie de eremita das artes plásticas, e as máscaras africanas, justamente. A pintura negra não importa absolutamente, diferente da escultura: “Tais objetos podiam ser adquiridos em lojas de antiguidades por pouco dinheiro e, assim, algumas máscaras tribais provenientes da África substituíram as reproduções do ‘Apolo de Belvedere’ (…) que adornavam os estúdios dos artistas acadêmicos”, diz E. H. Gombrich. Essa distinção militante fazia todo o sentido, visto que a arte acadêmica era a expressão fiel e acabada dos salões decadentes de Paris, para quem a arte devia seguir padrões rígidos de beleza, sem desviar um milímetro. Era ainda a arte convencional, estática e estéril da época de Luiz XIV, digladiando contra o “inacabado” impressionismo de Édouard Manet e com os dias contados.

Nessa renhida disputa por padrões de beleza, o que aquele material etnográfico em particular ensinou a Picasso foi o seguinte: como superar os limites impostos pela pintura de Cézanne, a mais avançada da época. Segundo Giulio Carlo Argan era um problema histórico, de “crise da cultura europeia”, que precisava encontrar outros modelos para seguir adiante (“Arte Moderna”, Companhia das Letras, 1993). Pois foram as máscaras africanas que abriram as portas da revolução para a cultura figurativa ocidental, ensinando-lhe uma nova estrutura plástica ao excluir algo de interessava à pesquisa dos pintores: as distinções entre forma e espaço. E também, nas palavras de E. H. Gombrich, a arte negra possuía “precisamente o que a arte europeia parecia ter perdido”, isto é, “expressividade intensa, clareza de estrutura e uma simplicidade linear de técnica”. Vai um pouco além disso, na medida em que um busto egípcio em calcário, do Antigo Império (2.700 a.C.), podia ser imbuído das mesmas características. Certas máscaras negras diferem deste busto por um detalhe a mais: não são nada naturalistas, mas pronunciadamente… geométricas. Enfim, estava descoberto o conjunto de percepções que faltava para fazer imergir uma nova concepção da imagem.

Máscara facial, Tribo Dan, Costa do Marfim e Libéria

Picasso resolveu dialeticamente o impasse pós-Cézanne unido a cultura visual europeia com a cultura visual dos negros, desfigurando a representação de pessoas e objetos. A síntese dessa descoberta foi “Les Mademoiselles d’Avignon” (1907), quadro particularmente importante porque é a pintura seminal do cubismo e de toda a arte subsequente; o big bang que deu origem a vários movimentos artísticos contemporâneos: o próprio cubismo, o neoplasticismo, o construtivismo e o suprematismo, com influência marcante no futurismo. Enfim, as tendências visuais modernas baseadas no pensamento geométrico-estrutural. Manifestava-se um novo classicismo, redefinindo nossa ideia de beleza. “Les Mademoiselles d’Avignon” é o quadro que culminou na “arte abstrata pura”, apesar de não ter sido a primeira pintura abstrata: esta fora realiza por Wassily Kandinsky (“Esboço para a composição IV”, de 1910). A expressão “arte abstrata pura” foi aliás cunhado por Guillaume Apollinaire, poeta e teórico do cubismo, em 1913, antes que Piet Mondrian o fizesse em seus escritos, poucos anos depois. Por fim, depois de “Les Mademoiseles d’Avignon” as artes visuais (pintura, escultura, desenho e gravura) nunca mais se pareceram consigo mesmas nem com uma cópia do mundo.

Segundo Herschel B. Chipp, “O movimento cubista foi, nas artes visuais, uma revolução tão completa que os meios pelos quais as imagens podiam ser formalizadas na pintura modificaram-se mais durante os anos de 1907 a 1914 do que se haviam modificado desde o Renascimento” (“Teorias da Arte Moderna”). Em outras palavras, em sete anos apenas a arte mudou mais do que nos 400 anos anteriores. Na verdade, revolução semelhante só ocorreu na arte em 1306, quando a pintura atrofiada dos góticos foi drasticamente transformada por Giotto, que criou a ilusão de profundidade numa superfície plana: “Nada que se parecesse com isso tinha sido feito em mil anos”, diz Gombrich. A escultura que serviu de modelo a Giotto para “A Fé” (o equivalente de nossa “Les Mademoiselles d’Avignon”) foi a dos mestres normandos, associada à pintura bizantina. Iniciava-se também um novo capítulo na história da arte, que modela o Renascimento e culmina no realismo de Gustave Courbet.  

Giotto fez o procedimento inverso dos modernistas e de Picasso. E depois de Picasso não havia mais propósito em pintar como antes, em parte devido à sedução da cultura europeia pela cultura negra. A representação da “realidade” rapidamente deixou de ser uma necessidade para as artes visuais, que se libertaram do naturalismo e definiram um novo objeto: a forma pura, concebida pelo intelecto.