Um pintor renascentista à altura de Leonardo da Vinci

Um pintor renascentista à altura de Leonardo da Vinci

Leonardo da Vinci é tido, seguramente, como o maior artista do Renascimento. Muitos não tergiversariam em afirmar: o mais importante de qualquer período da História da Arte. Opiniões tão categóricas costumam ser injustas, além de refletirem uma convenção que, por si só, não prova nada. Os termos de comparação não são óbvios (como sustentar isso em face de alguém tão diferente quanto Picasso, ou Marcel Duchamp, ou Kandinsky?) e os estudiosos do assunto podem não referendar a suposição. Quando menos porque a rivalidade pura e simples é um critério pouco nobre, em qualquer sentido. Interessam mais os “por quês” que permitem entender uma determinada obra do que sua popularidade imediata. Mas, apesar de ser um jogo imbuído de fartas doses de subjetividade, fazer comparações é algo inato e gostamos de fazê-las, nem que seja para o consumo próprio. Dito o que, Leonardo não está só, em seu tempo. Até possui um rival, à altura.

Em termos de importância para a cultura universal, o Renascimento Italiano só ficaria atrás da arte clássica dos gregos, influência basilar da própria Renascença, que volta às margens do Egeu em busca da fonte inesgotável. Em meio a esse furor criativo, algumas coisas se sobressaíram na segunda metade do chamado Quattrocento (ou Baixa Idade Média), época de transição para o mundo moderno. Quanto às artes plásticas do período, o cânone elegeu os contemporâneos Leonardo da Vinci, Michelangelo e Rafael acima dos demais, num contexto partilhado por figuras como Sandro Botticelli, Pietro Perugino, Donatelo, Filippo Brunelleschi, entre outros de assemelhada envergadura. Muitos não têm notícia dessa distinção consagradora, mas com certeza conhecem, além dos nomes, algumas das obras que fundamentam um juízo tão categórico. Elas integram nosso patrimônio comum tanto quanto o Papai Noel, de Haddon Sundblom ou a garrafa da Coca-Cola, de Raymond Loewy. O que poderia ser mais conhecido ou mais moderno?

Sabemos que a curiosidade infinita de Leonardo descambou seu interesse para uma série de coisas que é enjoativo repetir. Felizmente, nem vem ao caso. O talento para cientista e inventor em várias frentes agregou dimensões extras à sua inquieta personalidade, transcendendo as artes plásticas (chamadas hoje em dia “artes visuais”) e influenciando desmedidamente as opiniões sobre ele. Um talento tão multifacetado que chega a comprometer a imparcialidade de julgamento. Mas aqui não está em questão o seu gênio integral, e sim uma de suas manifestações, se bem que a mais destacada: a pintura e o desenho. Interessa-nos refletir apenas o artista, para assim haver um critério justo com os dois únicos concorrentes diretos, no mesmo campo de atuação.

Excluídas as demais facetas do célebre filho de Pisa (nascido na verdade no vilarejo de Anchiano), a tarefa para Michelangelo e Rafael continua difícil ao extremo. Se bem a quantidade de pinturas atribuídas a Leonardo seja notavelmente pequena — apenas 15 —, a de desenhos foi grande, e as duas produções conjuntas renderam maravilhas que fragilizam a distinção entre o simplesmente excepcional e o milagre, tamanho é o seu poder para gerar consensos, através dos séculos.

Quinhentos anos depois, uma certa pintura de Leonardo — inevitável dizer, a “Mona Lisa” (1503) — incorporou-se ao imaginário ocidental, transformando-se no ícone que é. Extravasou o estrito universo intelectual para descer ao nível das massas, tornando-se quase tão familiar hoje em dia quanto a Nike ou o Mc Donald. O que parecia improvável aconteceu: mais longe, ainda, neste sentido, foi a “Santa Ceia” (1495), que muitos de nós recorda das imitações que ilustravam calendário sem exposição nos lugares mais insuspeitos do Ocidente católico: os lares humildes até do meio rural. Nossas avós analfabetas adoravam o “quadro”!, postas diante, sem o saber, da mais alta iconografia da cultura humana, que finalmente replicou-se em forma de artesanato, pulverizando-se por toda a parte. Refluindo um pouco, é possível que em escala de importância sobressaiam, a seguir, dois desenhos de Leonardo: o “Autorretrato” (1512) do artista e o “Homem Vitruviano” (1490). Teríamos relacionadas neste parágrafo as quatro invenções supremas do mestre.

Registre-se apenas que, apesar do seu imenso sucesso, a última não corresponde a uma criação inteiramente pessoal. O conceito foi estabelecido pelo arquiteto romano (e homônimo) Marco Vitruvio Polião, e Francesco Di Giorgio antecipou um desenho algo similar ao de Leonardo, do mesmo “Homem Vitruviano”, sugerindo-lhe talvez os desdobramentos formais.

Vamos, deste ponto, por uma escala ascendente. Seria querer demais que surgisse no mesmo período de aproximadamente 100 anos (no caso, o Quattrocento) outro pintor tão grande quanto Leonardo e Michelangelo, mas logo surgiu um candidato.

Seu modelo no início da carreira é Perugino, de cujo estilo absorveu muitas características. Um leigo facilmente confundiria os dois, tanto quanto poderia confundir Verrocchio com o discípulo Da Vinci. Seja como for, as madonas de Rafael são famosíssimas, (duas em particular: a “Virgem do Prado” (1505) e a “Madona do Pintassilgo” (1506), mas nenhuma delas alcançou aquela dimensão icônica para a cultura, dos artistas precedentes, embora tenha chegado bem perto. Seu tratamento da cor, vale registrar, é exuberante nessa fase da carreira. Ambicionando quem sabe a projeção dos mestres, o artista deixou ao menos uma obra largamente difundida, também valendo-se do afresco. Embora não tenha se popularizado ao nível da “Santa Ceia” e do conjunto da Capela Sistina, a “Escola de Atenas” (1509), em cujo epicentro debatem Platão e Aristóteles (isto é, o Idealismo e o Materialismo), é uma realização poderosa, sob todos os aspectos. Se sozinha ainda não basta para levar o artista tão longe, coloca-o um patamar além de todos outros pintores da Renascença, incluindo Botticelli.

Rafael (natural de Urbino) tinha apenas 26 anos quando executou seu próprio afresco: a mesma idade de Michelangelo quando esculpiu “Davi”. Mas faltou-lhe tempo para, quem sabe, criar outras maravilhas. Pode-se cogitar que não conseguiu realizar a proeza porque morreu precocemente, aos 37 anos. É instigante pensar que Leonardo, na mesma idade, não havia executado nenhuma daquelas de suas principais obras, ainda (a Michelangelo só faltaria o “Juízo Final”). Se morresse tão jovem quanto o pintor de Urbino, é possível que o gênio de Anchiano não o tivesse superado enquanto artista. O que Rafael nos prometeu e não cumpriu, então? O que ainda teria feito, se vivesse os 67 anos do primeiro mestre ou os 88 do segundo? Para a história, porém, não interessam hipóteses improváveis, mas apenas fatos (afirmação altamente controversa), e Rafael, se é o terceiro grande mestre do Renascimento, não chegou a ameaçar a primazia dos seus concorrentes, como fazem entre si mesmos. Teve o favor da tradição, que o colocou entre Leonardo e Michelangelo, mas é um par meio deslocado entre os dois velhos, que bem poderiam tratá-lo como o que realmente foi: um jovem privilegiado.

Um degrau além e chegamos à tese polêmica: terá sido necessário a Leonardo reunir as quatro obras-primas que mencionamos para, em perspectiva, ombrear Michelangelo Buonarroti. Estamos pensando muito particularmente na Capela Sistina, cujo afresco de duas partes foi iniciado em 1508 e concluído apenas em 1541. E olha que o mestre florentino era, por ambição, mais escultor do que pintor!

Diz Renée Arbour: “Miguel Ângelo não é um pintor, é um escultor que utiliza os pincéis como utilizaria o escopro ou o martelo”. Tão excepcional foi o personagem que podia esnobar sua faceta de pintor em benefício das massas e volumes do mármore, de onde extraiu outras grandezas, que revelam parte do gênio que estava destinado a ser. A despeito de seus desenhos (nenhum dos quais ficou tão conhecido quanto os de Leonardo), foi na pedra que Michelangelo agigantou-se com a criação em sequência da “Pietá” (1499) e de “Davi” (1501), suas primeiras obras-primas. Possivelmente não são tão associadas pelo público médio ao próprio criador quanto a “Mona Lisa” o é, mas desafiam folgadamente o “Autorretrato” e o “Homem Vitruviano”, ainda que o gênero utilizado para a realização de tais obras tenha sido outro (desenho e não escultura).

“Pietá” e “Moisés” (1513) estão respectivamente um pouco abaixo de “Davi” e dos afrescos da Sistina, obras mais refulgentes, mas integram nosso imaginário em torno do que vem a ser o suprassumo de Michelangelo. E se no conjunto aqueles afrescos não transmitem a mesma noção de unidade que a “Santa Ceia” (devido ao caráter narrativo e não apenas cênico, e à adoção de dois estilos diferentes pelo artista), um detalhe central da obra a coloca indiscutivelmente no mesmíssimo patamar da Gioconda e da “Santa Ceia”: “A criação de Adão” (1513). Presume-se que não seja uma obra tão popular quanto as duas principais de Leonardo, mas é tão genial quanto. No geral, a originalidade escandalosa dos corpos nus e sua dimensão titânica (ao contrário das figuras angelicais de Leonardo e de Rafael) não oculta que ainda é o estilo clássico que aí impera. Só que, ao contrário dos pares, Michelangelo pertence ao mesmo tempo à Renacença e à modernidade, que inaugura: é o pai do Manerismo.

Com o “Juízo Final” ele supera os concorrentes e abre as portas de uma nova era na pintura. Pioneiro da arte como expressão, desaguará em Tintoretto, Rubense daí por diante, até estertorar nas tempestades de Delacroix. Uma influência avassaladora que, no terreno comum, é mais decisiva que a de Da Vinci e Rafael, cultores do equilíbrio clássico que aos revolucionários modernos soava ultrapassado e inconveniente. Repercutiram no Classicismo francês e similares, ao passo que Michelangelo segue na direção inversa. Há nele uma tensão que calha muito bem com certas tendências espirituais subsequentes, a começar do Barroco, com suas infinitas angústias (o exemplo de El Greco). Distante do universalismo das cortes absolutistas, vamos enxergar sua magnitude até as raias do Romantismo, perturbando a ordem estética e aquela outra ordem: a política. São desdobramentos terríveis ao longo de três séculos, onde a paz celestial é abalada pelas incandescências do inferno.