Para morrer dormindo, desde que não se interrompa o sonho

Para morrer dormindo, desde que não se interrompa o sonho

— Tá olhando o quê? Perdeu alguma coisa no meu rabo?

— Nada. Não estou olhando nada. (Mentira. Eu mirava, sim, o seu enorme traseiro).

— Vou pedir ao doutor Karmaykoll que tire o senhor dessa UTI e o mande para uma enfermaria. Pelo visto, já está totalmente recuperado daquele horrendo ataque de asma.

— Qualquer coisa será melhor do que urinar num vidro de azeitonas. Vocês são cruéis à beça.

— O senhor ainda não viu nada, doutor.

— Quem é o velhote aí do lado? Ele parece péssimo.

— Não admira. É Leonino Urso. Tem 104 anos. Não o reconheceu?

— Leonino Urso?

— É um escritor famoso aqui da nossa terra.

— Nunca li nenhum livro dele. Deve ser mais um de meus pecados.

— Quase ninguém lê livros hoje em dia, doutor. Com o advento da internet e das famigeradas redes sociais ficamos ainda mais ineptos e pedantes do que a média nas últimas décadas. O senhor deveria se aventurar mais pela literatura não científica. Só pensa em trabalhar e ganhar dinheiro.

— Não sou tão ambicioso e iletrado quanto você imagina. Aliás, eu também sou um escritor. Tenho dois livros publicados: Faz de conta que eu me importo com você e Corações Bipolares.

— Ora, quem diria? Um médico escritor. Nunca ouvi falar dos seus livros.
— Não sou um Leonino Urso, mas, eu me viro. E ainda conto 53 anos. Ou seja, ainda tenho mais de meio século para publicar livros, ficar famoso na minha terra natal e morrer à míngua num leito de UTI.

— Ele não está morrendo à míngua num leito de UTI. Estamos cuidando muito bem dele, pode crer.

— Não quis ser grosseiro. Sinto muito. Ele parece grave-gravíssimo… (Eu comentei, levantando-me do leito).

— Por favor, sente-se. O senhor não pode deambular dentro da UTI. Normas de segurança. Pode sofrer uma síncope, cair, bater a cabeça e ainda me render graves sanções administrativas.

— Desculpe. Eu só queria ver Leonino Urso de perto. Não o reconheci.

— Que história é essa? O senhor disse que não o conhecia.

— Eu falei que nunca tinha lido um único livro dele. São coisas diferentes.
— Então, o senhor o conhece?

— Sim. Pouquíssimo. Era articulista do jornal Notícias Impopulares. Escrevia uma coluna diária com receitas de bem viver. Ele frequentava o restaurante da minha família, esporadicamente. Certo dia, eu o reconheci, me aproximei e me apresentei. Ele disse que sabia, sim, com certeza, dos meus dois livros. Duvido muito. Deve ter dito aquilo para me agradar. Escritores, você sabe, são pessoas muito vaidosas. Leonino era um mentiroso gentil e carismático.

— Era? Não diga isso. Ele ainda está vivo, senhor.

— Não parece tão fascinante quanto da última vez que nos vimos.

— Obviamente. Ele está morrendo. Doutor Karmaykoll acredita que ele não sobreviva ao plantão de hoje à noite.

— É sério?

— Sim. Inclusive, a família pediu encarecidamente para que a equipe médica não utilize nenhuma medida heroica.

— Que tipo de medida heroica? Injeção letal de Coca-Cola na veia?

— O senhor não devia brincar com esse tipo de coisa, doutor.

— Estou irritado, deprimido. Portanto, sinto-me no direito de fazer chacotas com as misérias da vida. Na situação inversa, ele brincaria comigo. Era um sujeito espirituoso e bem humorado. Acho que eu não gostaria de morrer assim, secando aos poucos feito um curso d’água, longe de casa, dos meus parentes, dos meus livros, dos meus discos, das minhas diletas irrelevâncias.

— A gente não escolhe a morte. É ela quem nos escolhe.

— Isso é aviltante.

— É um mal necessário. O senhor é médico e sabe disso.

— Quantos homens você já viu morrer?

— Nunca pensei nisso. A gente não contabiliza esse tipo de coisa, sabia?

— Mais de dez? Mais de cem? Mil pessoas, quem sabe?

— Sei lá. Eu trabalho numa unidade de terapia intensiva. Há sempre muitos doentes em estado crítico. Sempre morre gente por aqui, mas, a maioria sobrevive, como é o caso do senhor, graças a Deus.

— Então, vou viver para contar essa história, certo?

— Suponho que sim.

— Quem sabe, poderia escrever um conto a respeito disso, dessa nossa conversa de cunho existencialista, dessa minha experiência como um impaciente médico convalescendo num leito de UTI.

— Viu só? O senhor já está tão bem que até se sente impelido a escrever. Vou recomendar ao doutor Karmaykoll que lhe dê alta amanhã cedo. É preciso desocupar o leito. Tem gente pior que o senhor precisando da vaga.

— São duas horas da madrugada. Será que poderíamos burlar os seus rigorosos protocolos de segurança e dar uma última espiadela, de perto, no velho Leonino Urso? Preciso me certificar que é ele mesmo. Não concebo que esteja em condições tão deploráveis.

— Humm… Não sei. Tá bom. Vou desconectar os cabos do monitor e ajudo o senhor a ficar em pé. Mas, só por um instante. Pode se apoiar no meu ombro, se quiser.

— Eu sabia que ainda tinha um coração pulsando dentro dessa bunda.

— Não abuse ou conto isso para a sua esposa.

— Você não faria isso comigo.

— Com certeza, faria. Ele não vai durar muito, doutor. Padre Cézanne esteve aqui mais cedo e fez a extrema-unção.

— Aquele padre pugilista? Ele tem estilo e charme. Embora, seja louco.

— É um padre maravilhoso. Agora, reze por seu colega, doutor. Talvez seja a sua última oportunidade.

— Isso é um problema, minha cara. Eu sou ateu. Vou só pensar algum tipo de pensamento altruísta em tributo à sua vida.

— Meu Deus! O senhor deveria rever os seus conceitos, sabia? A fé, nessas horas críticas, é fundamental, indispensável.

— Eu não gosto dos seus conselhos.

— Quer voltar pra cama, então?

— Não. Ainda não. Por favor. Deixe-me olhar para ele um pouco mais. Preciso recobrar os pensamentos, esmerar-me nas minúcias, puxar a memória pelos calcanhares, a fim de recordar como foi o nosso último encontro no restaurante. Qual era a cor da sua camisa de linho. A sua passada curta. Será que mancava? O timbre da voz. Não me lembro. O brilho vivaz nos olhos. Estava de óculos. O cheiro de hálito antigo. A suposta nuança amarela daqueles dentes idosos que gargalhavam entre goles de chope e de uma vida estupidamente gelada.

— Não concordo com o senhor. A vida é mais do que isso. A vida é fogo.

Você deveria escrever isso, sabia? Vou me deitar agora. Obrigado. Bom plantão.