Amigo não é coisa pra se guardar numa lata de lixo

Amigo não é coisa pra se guardar numa lata de lixo

Vivemos as agruras da intransigência. Amigos desconhecem amigos. É quando o sujeito se coisifica, numa metamorfose torpe, para desfavores da reciprocidade. Os órgãos do sentido perdem o rumo. De repente, já não são mais do ramo. É como se já não sentissem. Acontece assim a metamorfose: a primeira estação que seca são os olhos. Cega-se seletivamente. O rosto torna-se pálido, contrito, grave, com as crateras orbitárias preenchidas por feiosos maracujás maduros, perfazendo aquele jeitinho particularmente azedo de se enxergar os fatos.

Daí, como se acometido pelos efeitos colaterais da poesia de Maiakóvski, um fenômeno que acomete tão somente os incautos, toda a anatomia se transforma, se rebela e fica louca, na pior acepção da loucura, uma desventurosa concatenação de pensamentos que se revela nociva, escancarando uma fúria desvelada, inédita, insuspeita, em organismos que, então travestidos como espantalhos hostis, afugentam os pássaros do amor, inclusive, até mesmo, os caralhos-de-asas. Broxa-se frente a tanta violência verbal. Afetados pelo susto, os afetos batem as asas e os braços-de-abraços já não se encaixam como antigamente. Ao contrário, mãos e antebraços imitam fuzis, desaprendidos que ficam de compreender e tolerar. Logo, a pele passa a repelir, impelida de gastura, desperdiçada do seu real ofício, esquecida a inata capacidade tátil de arrepiar e sentir.

Como reflexo de tamanha dureza mental, os tímpanos descobrem-se enrijecidos pela amargura, passando a vibrar num abafado e tenebroso tom de dó maior, exaltando equívocos de dar pena, olvidando palavras que, inúteis como sílabas cultivadas em terreno infértil, escorrem fedorentas pelas gretas dos ouvidos como cíbalos infectos em cataratas de ais. A carne, que antes tremia de desejo e de frio, agora, se estremece de raiva. A alma, que costumeiramente se gabava por gemer de prazer e desejo, desanda a reverberar a ira como se fora este o único atributo natural de um ser humano.

Acaba-se menos humano, obviamente. Eis aí a desconstrução das relações interpessoais. As narinas viciam-se em farejar problemas, como se um mundo cão latisse aprisionado atrás das atrozes grades-costelas do peito. Nesta toada, àquele ponto de retraimento ético-moral, praticamente se consuma a inefável petrificação do indivíduo. É quando o andarilho se confunde com as pedras do caminho. Dorme-se poeta de Minas, desperta-se minério de pedra.

Por fim, a partir de então, em contra-fluxo à mutante paralisia dos sentidos e da sensatez, a língua, músculo lascivo e sedoso, destrava, esbraveja, ofende, avilta, condena, amaldiçoa e se configura na tal metralhadora de mágoas de que tanto falou o artista popular. Pronto. Assim se destroem as relações de amizade, cujas carcaças, lastimavelmente, para muitos, vão parar na lata de lixo do esquecimento, como se as pessoas fossem descartáveis.