Minha ditadura é melhor que a sua

Minha ditadura é melhor que a sua

Sempre detestei domingo. De dia, a obrigação de abrir a janela e ser feliz. De noite, a depressão de arrumar as coisas e recomeçar na segunda. Opostos postos à revelia dos sentimentos reais. Sempre vivo sete domingos por semana durante o pleito eleitoral. Oscilo 24 horas entre o pico de energia esperançosa às 5 da manhã, celebrado pelo sorriso do meu bebê, ao pranto fadado à inércia pelo desgaste argumentativo oco. Agora, quando tento confortar Liz nas madrugadas, ‘a mamãe está aqui’ me causa mais aperto no peito que calma. Não posso mais garantir que as coisas ficarão melhores. Não me refiro especificamente aos candidatos e os possíveis resultados, apesar do cenário ser desolador. Falo daquilo que fizemos conosco, eleitores. O que estamos dizendo nas entrelinhas desse desentendimento generalizado? Chamam de onda de intolerância. Vejo mais como uma epidemia egóica verborrágica. Fomentada pela decadência da comunicação. Pessoal e profissional. Propagada pela tecnologia. Das redes sociais aos jornais. Uma imprensa descaída e amorfa. Cidadãos ensandecidos e sem crítica. Fatos e mentiras operando no mesmo regime de verdade. Cumprem um objetivo comum: confundir para descer uma opinião goela abaixo.

Para além do cenário mundial de decadência da esquerda, que impulsionou a adesão ao extremismo, a necessidade de convencimento do outro tornou-se maior que a própria ideologia. Militantes de todos os lados aderem o discurso da ‘minha verdade é melhor que a sua’. Um desrespeito generalizado que tenta resgatar o charme corajoso do antigo sincericídio. Lembra? Aquele jeito quase grosseiro de colocar em pratos limpos aquilo que todos veem, mas ninguém tem a audácia de verbalizar? Então, ele foi adaptado ao mundo virtual através do #prontofalei. Constrói a imagem daquele personagem impetuoso. Porém, escondidos na nuvem, apenas ofendem e acusam para vencer o embate. Ao contrário do sincericida, não materializam o incômodo não dito e suspenso no ar. E, em verdade, não dizem nada. Só repetem frases feitas, feias e fáticas articuladas para comprovar a suposta superioridade ideológica. Fantasiam ter força em sua voz. Quase sempre, amplificam a fala de um grupo. Minuciosamente pensada para a manutenção dos privilégios das classes favorecidas. Tanto que sabemos mais sobre escândalos que propostas no meio político, por exemplo. É o paradoxo da individualização e da institucionalização.

Penso que muitos são os dramas das tramas da subjetividade contemporânea. A exacerbação do self é para mim uma de suas mais graves facetas. Na modernidade do sociólogo John Brookshire Thompson a mediação da experiência — quando se vive o fato por meio da tecnologia — é caracterizada como o problema do deslocamento simbólico. Isso pode significar implodir um discurso agressivo ou vazio que compila todos as frustrações e violências mal elaboradas em um só grito. O marketing político e os estrategistas virtuais sabem disso. E trabalham arduamente para simular a sensação de que cada um de nós dá a forma que deseja à argumentação. Falácia. No real e no virtual. Pense: apenas digitar uma frase antes de compartilhar um material não faz de você um pensador. Aquilo que chegou pronto para ser distribuído veio de onde e com qual interesse? Não sei você, mas eu não ando com tempo de sobra para fazer meme de graça apenas por curtição ou posicionamento. Vivemos o horror dos Tempos Modernos e como Chaplin já anunciara, mais repetição e menos reflexão. Sejamos menos ingênuos. Estamos obrigando o outro a engolir um tal melhor que não necessariamente escolhemos. E fantasiamos que a ideia é nossa. Os mecanismos de controle são mais astutos que nossos dedos clicadores de opiniões. Assumamos parte de nossa ignorância. O pensamento reflexivo e as análises de cenário são bem diferente de conversa de boteco ou briguinhas de rede social. Não sejamos extrativistas que sobrevivem da caça e pesca apenas daquilo que convém. Alcançar concepções embasadas exige estudo, análise de contexto, humildade de não saber e, para isso, muitas, muitas e muitas perguntas antes de formatar respostas definitivas, tratadas como máximas perfeitas.

Obviamente temos o direito a expressão. Podemos dizer o que quisermos. O chato é a tentativa constante de entuchamento de convicções. Danoso é pegar pedaços de falas soltas e compor raciocínios fragmentados a serem usados pela elite interessada na manutenção de seu poder. Principalmente em situações sérias, como a definição do futuro de um país. Aproximar da realidade exige olhar amplo. O mais desinteressado possível. Daí podem brotar discussões construtivas. Postas em práticas em ações coletivas. Diferente de reações revoltadas massivas. Precisamos estar organizados criticamente. Só a educação, social e intelectual proporciona o nível exigido para tal. Porém, estamos atuando primitivamente, como animais enfurecidos enjaulados, travestidos de intelectuais que tudo sabem. Estou apavorada com as possíveis consequências de tanta ignorância. E se eu já estiver contaminada sem saber?

Pensando aqui na frase provocadora do meu editor para esse texto: “Aprendi a não tentar convencer ninguém. O trabalho de convencer é uma falta de respeito, é uma tentativa de colonização do outro”, escreveu Saramago. É, sábio autor. Infelizmente estamos todos tomados por certo grau da cegueira branca de seu ensaio. E, na busca pela vitória da nossa suposta preferência, vandalizamos almas. A nossa, especialmente. Meu lar é mais que meu marido, filha, demais entes e amigos queridos. Tenho pertencimento social imenso e, deve ser por isso, que a gastrite está me queimando por dentro. Resisto ao mundo onde a capacidade de experimentar não está mais ligada ao encontro. Daí se oriunda o autoritarismo dialético atual. E como podemos relacionar experiências mediadas aos contextos práticos da vida cotidiana? Pergunta de Thompson que ainda estamos por responder.

Título tomado de empréstimo de Renato Alt.