Precisa pouco amor pra gente viver bem

Precisa pouco amor pra gente viver bem

80 anos nas costas e mamãe me sai com um comentário desse: “Precisa pouco amor pra gente viver bem, né?”. Sim. Quem sou eu para discordar da mulher que torturei, ao obrigar que ela me expelisse pelas entranhas durante um delongado parto com dor? Disse a frase enquanto coava café em coador de pano, numa velocidade incompatível com a vida; com o meu ritmo de vida, obviamente. Não sei como ela chegou àquela intrigante conclusão. Acho que falávamos do passado, para variar. É difícil conversar com pessoas envelhecidas sem que o passado venha à baila na maior parte do tempo. Acho que dizíamos da simplicidade das coisas, de como éramos felizes mesmo quando tínhamos um patrimônio material irrisório. O fato é que eu sorri e a conversa deixou o café mais doce do que a média, o que não deixava de ser um prejuízo moral para mim, um homem boçal e imaturo cavoucando dinheiro para se manter no jogo da subsistência urbana.

Já faz tempo, minha mãe mora sozinha num casarão. O mesmo lar em que fui criado. Gosto de visitá-la aos finais de tarde, especialmente, nos dias em que me sinto aturdido, esgotado, cansado da hipocrisia social da qual não consigo me desvencilhar. “Fiz pudim de leite condensado. Acho que você vai gostar.” Contei a ela sobre Sophie, uma garota de 20 anos que eu conhecera naquela manhã. Era uma estudante universitária que tinha comprado um dos meus livros pela internet e esperava que eu lhe fizesse uma dedicatória. Interessava-se também em conversar sobre o conteúdo do livro “Bipolar”. Sem modos, fui logo avisando que, se ela tinha adquirido o livro pensando que fosse um tratado médico na área de transtornos psiquiátricos, tinha dado com os burros n’água. Fiz piada dizendo que, se quisesse o dinheiro de volta, ela teria que me assaltar ou me dar um tiro. Afinal, a intolerância andava em voga naqueles dias. Mostrando-se mais madura do que eu, apesar da irritante diferença de idade entre nós, Sophie sorriu, chamou a atendente venezuelana e pediu dois cafés. “É por minha conta, não se preocupe.”

Eu não estava preocupado. Eu estava estranhamente satisfeito e fascinado, pois uma mulher me pagaria um café. Adoro as mulheres. Adoro café. Tinha tempo de sobra para conversar com aquela simpática criatura a respeito da minha “larva” literária, essa praga que me consome por dentro. Bate-papo entre autores e leitores: isso é um tipo de coisa bem incomum. Primeiro, porque poucas pessoas leem livros hoje em dia. Segundo, porque muitos preferem se comunicar virtualmente, pelo uso de smartphones, do que fazê-lo pessoalmente, olhos nos olhos. Terceiro, porque eu não escrevo para fazer amigos, o que torna esse ofício prazeroso e libertário, embora, me deixe em desvantagem.

De repente, Sophie desandou a falar da própria vida. Não dava para relevar que ela tivesse olhos tristes. Uma das poucas vantagens de ficar maduro, sem apodrecer antes da hora, é desenvolver a capacidade de antever situações. A gente fica craque em “olho clínico”, sendo capaz de captar, com mínima margem de erro, o perfil psicológico dos seus interlocutores. “Qual é o segredo que te incomoda, Sophie?”, perguntei valendo-me de uma intimidade que, claro, não tínhamos. Depois de permanecer com o seu belo rosto congelado durante um instigante lapso de tempo, respirou fundo e me contou que tinha sido molestada sexualmente quando criança, por volta dos 8, durante dois anos consecutivos, por um primo adulto que, felizmente, já tinha partido de mala e cuia para o quinto dos infernos. Um brinde ao capeta, então, eu disse.

Ela riu. Tinha contado o segredo aos familiares fazia pouco tempo. Depois da chocante revelação, a família reagiu da forma que dava. No geral, todos entraram em parafuso. O pai sofreu um surto e estava encostado pela Previdência Social. A mãe quedou deprimida e, por muito pouco, não foi parar numa unidade manicomial. A irmã mais velha decidiu sair de casa, mudou-se para Londres, sem prazo para voltar. Mais curioso do que a precaução mandava, eu arrisquei saber como ela lidava com o trauma.

Contou-me que tomava antidepressivo, uísque e cuidado. Sofria de gastrite, artrite, fibromialgia e saudades-de-nada. Cursava Letras. Namorava firme com um colega de sala. Não era da minha conta, mas, fazia sexo com ele, sim. Não sentia muito prazer naquilo, mas, transava com ele. Fazia psicoterapia. Fazia ioga. Fazia tempo que não cria em Deus. Nadava de segunda à sexta, das 6 às 7. Mil metros por treino. Não, eu nunca tinha ouvido falar dela: era tricampeã do estilo “borboleta” nos jogos universitários. Fazia quitutes para defender um trampo. Escrevia poesia. Lia de tudo um pouco. Gostava do meu estilo literário. Odiava ter que partir, mas, já estava na hora de ir para casa. Pagou a conta. Abraçamo-nos. Partiu com o meu livro dentro da bolsa.

Se eu contar, vocês não vão acreditar. Mamãe anda fazendo aulas de dança do ventre, às escondidas. Orgulhosa, mostrou-me na tela do celular o vídeo da sua impressionante performance durante o Congresso Nacional da Melhor Idade. Não tinha por que esconder isso de mim, mãe. Tinha sim. Pouco importava. Mamãe não perdia mais tempo com histórias tristes. Há cerca de dez anos nunca compareceu a velórios. Afirmou que estava estarrecida, que tinha ficado com muita pena da moça que fora abusada pelo parente durante a infância, mas, preferia mudar de assunto, se eu não me importasse. Não. Eu não me importava. Serviu-me outro pedaço da sobremesa. Estava realmente uma delicia. Dava, sim, para ser feliz com pouco. Precisava pouco amor pra gente viver bem. Desde que não faltasse pudim de leite condensado para adoçar o amargo da vida.