As razões certas para se esfaquear um ser humano

As razões certas para se esfaquear um ser humano

Sinto decepcioná-los, mas, confesso que sou adepto à picanha malpassada e ao sexo sem fins reprodutivos. A carne fraca não gera em mim nenhum sentimento de culpa. Aliás, não conheço um único vegetariano que não sofra de vacilações, palidez e anemia. Isso é o que eu chamo de dar o sangue por uma causa. Espero não ser esfaqueado por pensar assim. Pior que a intolerância ao glúten é a intransigência das ideias.

Infelizmente, ando mais sarcástico do que nunca. Isso me torna uma pessoa desagradável nos rega-bofes. Acho que é o mal da idade, essa coisa de não capitular por um bonde desgovernado, um ataque de piranhas ou um piano em queda livre. Tenho uma teoria particular: acho que o ser humano é, por natureza, um animal carnívoro e, de quebra, herbívoro. Não nascemos para a dieta vegetal exclusiva. Certas coisas nunca mudam. Basta olhar a história. Já era assim quando os nossos ancestrais pulguentos moravam em cavernas, fornicando com as próprias mães, irmãs e filhas, criando confusão, matando a pau e à pedra, inventando razões de viver, descobrindo deus e o fogo, concebendo as religiões e o churrasco, essa festejada prática gastronômica milenar da qual nunca mais nos apartamos.

Não dá para inferir que eu me sinta confortável ao saber da mortandade dos animais em benefício da humanidade. Não. Por todos os ângulos, a morte violenta é sempre chocante. Mas, não se pode comer o bicho vivo. Isso é fato. A fome nos ensina a matar de acordo com parâmetros sociais aceitáveis. Lembro-me, com remota revolta, de presenciar a minha avó girando um frango pelo pescoço, até a morte, como se ele fosse uma calcinha e ela uma dançarina de cabaré. A pobre ave destroncada saltitou agonizante no terreiro até tardar paralisada. Daí, então, foi mergulhada numa panela com água fumegante e depenada com rapidez e habilidade. Senti pena do frangote. Senti raiva da vovó. Pensei em matá-la, quem sabe, destroncada. Mesmo assim, mais tarde, quase estapeei os meus primos e irmãos na disputa por uma das coxas do galináceo.

Confesso, sem orgulho nenhum, que, na minha infância, fui sim cúmplice da matança de leitões na fazenda da família. Seguindo métodos educacionais polêmicos e arcaicos, papai escolhia as vítimas no chiqueiro e convocava a meninada para o extermínio pedagógico dos suínos. Homens de verdade precisavam aprender a matar as crias se quisessem sobreviver nesse mundão-véio-sem-porteira. O esquema era antiquado, ortodoxo, bruto: cada menino segurava numa das patas do pobre animal, enquanto papai se ajoelhava sobre o seu pescoço, imobilizando-o por completo. Daí, o meu velho enfiava a faca no sovaco do porquinho, mirando sempre na cara do coração, que era o alvo ideal, a víscera preferida para ser atingida. Nem sempre a carnificina funcionava. Acontecia do bichinho espernear e escapulir para morrer de hemorragia, minutos mais tarde, num canto qualquer do quintal. Todo o trauma da chacina arrefecia quando a mesa era posta com costelinhas crocantes, torresmo e guaraná à vontade para a molecada valente.

Faz tempo, tenho evitado assistir à TV. Os noticiários deixam-me mais miserável que o usual. Mesmo assim, quando eu soube que um dos candidatos à presidência da república tinha sido vítima de um atentado com arma branca durante uma passeata, senti-me compelido a me atualizar quanto aos fatos. Então, sintonizei a absurda caixa de Pandora. A cena do ataque ao candidato da extrema-direita deixou-me extremamente aturdido. Creio que demande ódio extremo para que um homem tenha segurança suficiente para enfiar uma faca no estômago de outro homem. Não é para qualquer um. Não é para qualquer raiva. Porque, nesses casos, nunca se fere o sujeito com a simples intenção de aplicar nele um susto, um corretivo. O objetivo é ferir de morte, uma vez só.

Apesar do deplorável ataque, mesmo que o candidato escape incólume da sanha dos micróbios esquerdopatas (os boletins médicos atestam que “sim, ele vai ficar bem”), não receberá o meu voto nas urnas. Os nossos pensamentos simplesmente não se alinham. Perplexo com a cena de manifesta selvageria repetida à exaustão pelos telejornais, sob vários ângulos, com zoom, slow motion e tudo mais, acabei acabrunhado a refletir sobre a íntima relação dos homens com as lâminas cortantes. Lanças. Flechas. Punhais. Espadas. Adagas. Sabres. Fiquei pensando nas primeiras guerras travadas entre os povos, há séculos. Os sanguinários embates tête-à-tête. O pânico nos olhos, por causa do risco iminente de morte. A pontiaguda saudade de casa. O fio da navalha dilacerando a carne humana com fins de poder e dominação. Graças a Deus, um certo dia, alguém inventou a pólvora, uma das maiores criações da humanidade em prol dos atos desumanos. Finalmente, a arma de fogo distanciava-nos da culpa, pois, mantinha limpas as bárbaras mãos dos agressores. Daí, então, para o advento da cadeira elétrica, da injeção letal, da câmara de gás e da bomba atômica, foi um pulo.

No final das contas, depois de tanto lucubrar sobre a violência, eu já me sentia cansado e um bocado porco. Só faltava mesmo aquela velha faca afiada cravada no peito.