Odeio meu pai

Odeio meu pai

O amor morreu dentro de mim da pior maneira possível: devagarinho, aos poucos, até que um dia: finitum est. Vidas que se apartaram por uma vírgula. Melhor: pela falta dela. Eu preferiria, mil vezes, ter dito ou escrito “Odeio, meu pai”. Nada mais formal para qualquer ser humano. Afinal de contas, em maior ou menor conta, todos desse mundo odeiam alguém ou alguma coisa. Namorados odeiam a luz. Jesus Cristo detestava a hipocrisia do seu nefasto rebanho, tanto assim que, apesar da sua reconhecida brandura, expulsou a gritos e pontapés os mercadores do templo. O monge mais pacifista da montanha odeia a guerra dos homens lá embaixo. E por aí vai. E por aí segue a vida, entre lágrimas de júbilo ou de sofrimento.

Não teria, se fosse esse o caso, nenhum motivo plausível para sair daqui neste domingo e comprar um daqueles impressionantes frascos de perfume da Mud’s para presentear o meu pai. Talvez o fizesse, como diria meu dileto irmão, Billie Bee Bill, para fazer a moeda circular no comércio local. “Tire o velho escorpião do bolso, irmãozinho querido. O dinheiro foi criado para passar de mão em mão, pode crer…” — ele dizia, enquanto limpava o rabo com cédulas de cem denários.

Como eu lhes disse desde o início, odiava e ainda odeio Max Maxell Mackenzie, o homem que veio a se configurar como o meu legítimo pai. Quer dizer, aquele sujeito que despejou lufadas de sêmen, baldes de gametas abilolados dentro da caçapa fumegante da jovem e esfuziante garçonete Mary Marie Mary, a minha querida progenitora que me pariu sob descomunal esforço numa noite friorenta, amparada tão somente pela luz de uma lamparina, pelo esgar de um cão labrador e pelo mirar apavorado de uma parteira gaga que enxergava de um olho só. “Tá-tá-tá nascendo…. Fo-fo-força agora, Ma-Ma-Ma-Mary…”. Por onde andava o velho Max Mackenzie enquanto Mary Marie era rasgada ao meio pelo concepto obeso, roxo e chorão que eu fui? Ora, perguntem isso ao diabo, da próxima vez que cruzarem por ele numa esquina.

Não guardava e não guardo Max em boa conta. Simples assim. Mera condição de causa e efeito, eu posso lhes assegurar. Apesar de estranho, não sou má pessoa. Aos 12 anos puxei contra ele uma faca de desossar carneiros. Por incrível que pareça, ele retrocedeu ao espancamento de mamãe e saiu para fumar um Jeronimo’s no quintal. Foi a última vez que assisti a Max Mackenzie surrar mother Mary com um cabo de machado. Ele passou longe de ser um pai presente e um esposo carinhoso. Suponho que não gostasse de crianças como adorava cavalos e prostitutas. Não o culpo por isso. Não estava para brincadeiras. Lembro-me de uma única vez em que o vi sorrindo. Ele se divertia comigo, num emblemático feriado da padroeira de Cudojudas, quando gargalhou até urinar nas calças, ao mesmo tempo em que me segurava por um dos tornozelos, de ponta-a-cabeça, e brincava de roleta russa com a minha cachola e um Delitos calibre 38, prateado, com empunhadura de marfim, o mesmo trabuco com o qual tinha matado o senhor e a senhora McCartney, um casal de idosos que eram nossos vizinhos em Devil’s Hands.

Não me recordo que ele tivesse me acalantado nos seus braços sequer uma vez. A não ser numa tarde modorrenta, de calor insuportável, quando arrancou-me da cama, agarrou-me pelos sovacos e me atirou contra a parede do quarto para que eu parasse de chorar em virtude de uma lancinante dor de ouvidos. Penso que ele pensava que eu fosse uma panqueca, um catarro tísico. Por que mamãe não interveio em meu favor? Não me lembro bem ao certo, afinal, eu contava apenas 4 anos. Billie Bee Bill dormitava no berço. Suponho que mamãe estivesse desacordada no piso da cozinha enquanto Jack, o labrador, lambia o sangue doce que escorria das suas narinas.

Numa ensolarada manhã de domingo, farta de tanta truculência, iniquidade e desamor, como father Mackenzie estivesse extremamente ensandecido devido uma noite inteira mamando garrafas de Cuspe, mamãe acertou-lhe na testa um robusto disparo de Winchester que ele costumava usar para caçar marrecos e “assustar crioulos”, como ele mesmo dizia, em Confusion Lake. Pensamos em avisar a polícia local, mas, não parecia nem um pouco justo que mamãe passasse o resto da sua vida enjaulada por ter feito justiça com as próprias mãos e matado uma fera inquebrantável como Max Maxell Mackenzie, o meu pai biológico. É lógico que sentimos remorso e desconforto. Sentimos também um alívio incrível. Então, superamos os melindres e enterramos o pesado e risonho cadáver do malvado Max numa cova profunda que eu mesmo escavei com as unhas, a fim de não sermos importunados pelas moscas metálicas e pelo mau cheiro da sua indesejável presença em nossas vidas.