Quando as palavras doem mais do que um soco

Quando as palavras doem mais do que um soco

A primeira mulher por quem me apaixonei foi uma professora que tive no segundo ano do ensino fundamental, cujo nome — putz! — me esqueci. Fundamentalmente, eu estava caído por ela, uma delicada educadora que a gente chamava simplesmente de “tia”, sem nenhum tipo relevante de recalque, frescura ou sequela pedagógica. Nosso relacionamento, por razões óbvias, não prosperou. Houve um magnífico hiato afetivo desde então. Até que fiquei perdido por Valéria, uma coleguinha de escola.

A paixão platônica sucedeu por volta do sétimo ano, não tenho bem certeza. Na média, meninos e meninas da turma contavam uns 12, 13 anos de idade. Estávamos em plena puberdade. De forma geral, os garotos eram magrelos e tinha penugens nos sovacos, no púbis e abaixo do nariz. Sem que percebêssemos, os testículos estavam sendo promovidos de azeitonas a caroços de pequi. Por causa das escassas mudanças físicas, os guris eram desengonçados, infantiloides e pensavam, compulsivamente, em brincar de brigar, jogar futebol e trocar figurinhas.

Arrebatadas pelo turbilhão hormonal das gônadas ovarianas, as meninas começavam a ganhar também os seus pelinhos, maior estatura, gordurinhas nos quadris, contornos mais divertidos, suaves e delicados. Eram o esqueleto, os músculos, as vísceras e a mente sendo irrigados, diuturnamente, por rios de estrogênio. Nessa fase do desenvolvimento físico e psíquico, como sói ocorre na maior parte do tempo, os meninos eram retardatários, permaneciam idiotas por um período de tempo superior ao das meninas. É fato que estamos sempre um passo atrás das mulheres. O que se há de fazer? Deus, que certamente é uma mulher, quis assim e, quando Deus quer alguma coisa, vocês sabem, ninguém segura. Se não concorda, morra, desça à mansão dos mortos, ressuscite ao terceiro dia e reclame com o próprio, de preferência, durante uma de suas divinas crises de enxaqueca ou TPM, para que ele o esmague com os seus sacrossantos pés.

Os dias passavam e eu sofria de paixão, calado, bestamente incógnito. O corpo de Valéria apressava-se em ser mulher. Era a garota mais desenvolvida da turma, no que diz respeito aos caracteres sexuais secundários decorrentes da inundação hormonal que dizimava a ingenuidade. Eu me ligara mentalmente a ela, talvez, porque a achasse bonita, delicada e, em especial, porque me aprazia o seu jeito de ser, de falar e de não sacar que eu existia. Pode ser risível agora, mas, eu sequer pensava em dar um amasso nela, embora, idealizava que andávamos de mãos dadas pelo pátio da escola. Talvez, se tivesse sorte, eu pudesse abraçá-la sem que as freiras se dessem conta. Se tudo corresse bem, se o universo conspirasse, iríamos ao cinema e eu piraria, por que não? Por causa da paixão platônica, eu vivia no mundo da lua e jurava matar dragões por ela.

Precipitadamente, a natureza muniu-a com tetas volumosas já em tenra idade. Naquele tempo, a palavra bullying sequer era usada no Brasil e todos, rigorosamente todos, possuíam um apelido, na maioria das vezes, ultrajante, engraçado e que pregava que nem chiclete nos ouvidos da gente. Por causa dos seus prematuros dotes mamários, algum capeta travestido de menino criou para ela a alcunha de “vaca” e o famigerado apelido pegou mais do que catapora. Sim, naqueles dias, ainda tínhamos muita catapora e massacre moral dentro das escolas.

Sempre que a Valéria entrava ou saía da sala, a meninada danava a berrar como se fosse vaca, bezerro, gado, enfim, uma algazarra incrível que, incompreensivelmente, nenhum dos professores coibia. Eu sofria, achava a coisa toda deplorável, mas não fazia nada para redimi-la. Sempre fui inseguro e tinha medo que todos soubessem que eu me afeiçoara a ela. Enfim, o ano letivo acabou, Valéria mudou-se de escola, a paixão minguou, eu me liguei a outras garotas e continuamos a crescer, desaprendendo com os próprios erros.

Recentemente, repercutiu muito na mídia em geral um vídeo doméstico gravado na Rússia, no qual um grupo de homens brasileiros aparecia numa rua cercando uma mulher russa e gritando palavras chulas de cunho sexual, direcionadas a ela, sem que a mesma percebesse, por claras questões idiomáticas, que estava sendo ridicularizada numa brincadeira de péssimo gosto, provavelmente regada à álcool, consumando uma espécie de estelionato moral e ético. As cenas de grosseria correram o mundo e acentuaram a péssima reputação dos brasileiros no que tange à falta de modos, muito embora, a burrice e o mau gosto não sejam uma exclusividade verde-amarela. Assisti àquelas cenas de “diversão” dos rapazes e me senti mais desanimado e miserável do que o normal. Homens sendo homens, cruéis, mais uma vez.

Tem um final feliz nessa história. Há poucos dias, reencontrei Valéria numa padaria. Reconheceu-me. Tomamos café. A mútua satisfação pelo inusitado encontro dava a falsa impressão de que não nos víamos tinha pouquíssimo tempo. Conversamos amenidades, falamos quase nada sobre os tempos de escola e admitimos que tivemos uma infância privilegiada e feliz. Eu podia ter dito, mas, não disse. Ela jamais soube e não saberá. Depois que ela se foi, num daqueles costumeiros acessos de melancolia, fiquei imaginando que, sim, provavelmente, teria sido adorável amassá-la no escurinho do cinema e sentir toda a maciez reconfortante dos seus apressados peitinhos púberes.