A noite em que todos souberam que vovô foi um pedófilo

A noite em que todos souberam que vovô foi um pedófilo

Tudo começou com uma taça de champanhe. Alguém propôs um brinde. Fazia todo sentido. Afinal, era aniversário do patriarca. 97 anos. Uma típica comemoração familiar: avós, pais, filhos, netos, bisnetos, bistecas de porco assando e uma trinca de cuidadoras que se revezava nos lides mais primários com o aniversariante. Colocar comida esmagada na boca. Limpar a baba. Abanar as moscas impertinentes que teimavam em chocar ovinhos num dos suculentos vincos daquela tez franzida pelo tempo. Trocar a fralda. Aplicar uma pomada supimpa contra assaduras.

Tinha tudo para não ter nada de novo. Mas, tinha. Ou não. Era uma festa familiar como outra qualquer no pequeno e remoto condado de Melancolia. Contudo, o cristianismo e o álcool operam verdadeiros milagres. Alguém sempre acaba exagerando na fé e na bebida para ir tocando em frente, tocando na ferida, tocando no coração das pessoas da pior maneira possível, ao tocar em determinados assuntos indigestos que envolvem a depuração de verdades pruriginosas arraigadas no âmago familiar.

Uma das filhas, a mais velha, a corola que jamais se casara, levantou a taça, francamente inebriada pelo sangue-de-cristo, pediu a palavra e disse que, agora que a mamãe já estava morta mesmo, a hora não podia ser mais propícia para que, finalmente, num esforço honesto e coletivo, fossem compartilhados e debatidos os segredos cortantes que, durante anos, permaneceram velados pela maioria dos indivíduos daquele clã, especialmente, as mulheres. A voz suave de Frank Sinatra cantando “I’ve got you under my skin” ressoou em plenitude pelos cômodos da casa por causa do silêncio sepulcral que se instalou.

Como assim “segredos secretos da maior gravidade”, uma adolescente quis saber, cheia de curiosidade e redundância. Por favor, não faça isso, suplicou um dos irmãos, agarrando a primogênita pelo cotovelo, tinha que ser um homem, recém operado de um câncer da corrupção pela força tarefa da polícia federal. Em virtude da iminência de uma hecatombe emocional doméstica, alguém teve o bom senso de baixar a chama do forno para não queimar a leitoa e desligar o som. Pele. Pururuca. O repertório de Sinatra. Nada combinava com a hora do espanto, senão, o coração pulsando na garganta.

A irmã caçula repeliu a iniciativa que, de certo modo, já chegava deveras atrasada, insistindo no adiamento da resenha, dizendo tenha a santa paciência, hoje não, respeite o nosso pai, pelo amor de Deus, é aniversário dele. Uma neta ateia (havia inúmeras ali) farejou perigo nas palavras e saiu tropeçando pela sala, catando mamonas e a meninada. A maioria das pessoas ali ainda cria e compreendia que determinados assuntos cabeludos não deviam jamais ser tratados na presença de crianças. Ia rolar um concurso de karaokê na sala de estar, com direito a premiação com docinhos. Prazeres irresistíveis. Crianças confiam demasiadamente em adultos que lhes oferecem guloseimas. Um perigo. Mais do que depressa, a gurizada vazou.

A fralda vazou, vamos trocá-lo, com licença, pessoal, desconversou uma das cuidadoras, já empunhando e empurrando a cadeira de rodas entre os convivas numa manobra rápida, arriscada e astuta para retirar do ambiente aquele amado, odiado, inerte, flácido e não-responsivo naco-de-carne-com-os-olhinhos-azuis. Nem precisava tanto. Fazia três anos que vovô, pioneiro em Melancolia, renomado médico clínico geral daquelas inóspitas paragens, tinha ficado surdo, mudo e insano, após sucumbir ao grau máximo de um estorvo neurológico difamante provocado pelas doenças de Parkinson e de Alzheimer. Não reconhecia a água, a comida, as pessoas, os comprimidos, os excrementos entre as coxas, os acontecimentos alvissareiros e os escabrosos da sua vida pregressa, muito menos, as próprias lágrimas. Tanto assim que não destilou nem uma delas sequer quando a companheira com quem tinha convivido por mais de sete décadas bateu as botas. Bodas do escambau eles já tinham comemorado. Ela morreu, bestamente, durante o último verão, atropelada por um pastor alemão quando voltava de um culto na igreja.

Pensamentos atropelados acorreram à cabeça dos presentes. Durante anos, certos assuntos permaneciam um tabu. Os sentimentos misturavam-se num miserável, sofrível, indecifrável turbilhão emocional que misturava respeito, gratidão e amor com desencanto, fúria e rancor. Ao tentar se desvencilhar do irmão caçula, a primogênita, que tinha proposto a contenda antes da refeição, se desequilibrou, deixou cair, espatifar sobre a mesa a taça de cristal, cortando-se numa das mãos, profunda e gravemente, por mero acidente, adiando, mais uma vez, para outra oportunidade, para a próxima confraternização familiar, uma inoportuna, crucial e cruciante conversa que já devia ter acontecido, no mínimo, na pior da hipóteses, 30 anos atrás. O jantar foi finalmente servido. E já estava frio.