Amar é um mal necessário

Amar é um mal necessário

Eu sou um bicho. Eu sou apenas mais um, bicho. Um daqueles marmanjos que, lamentavelmente, incorre em erros infantis. Sou um animal em conflito com o excesso de racionalidade. Quisera gozar a vida em qualquer lugar para o qual o nariz apontasse. O que me mata é a expectativa. Odeio expectativas. Por isso, elas me perseguem. Uma moça de curvas suaves brota na tela plana da TV, ela prevê o céu nublado, a geada no sul, a ressaca no litoral atlântico, o sol escaldante no centro-oeste, as pancadas de chuva, contudo, nada conjectura a respeito de mim, de nós, da paixão platônica que, calada e invisível, no meu claustro vigora. Isso parece razoável agora. Fantasias tolas, metas pífias. Um país de dimensões continentais. A enorme audiência nacional da rede televisiva. Afinal, neste mesmo instante de deleite unilateral, há milhões de sujeitos sem predicados a rasgar o verbo, desarrazoados como eu, comendo pipoca, comendo alguém, trocando secreções, micróbios, afagos e insultos, queimando tempo na sala de estar. Gostaria de fumar um Jeronimo’s, de estar numa daquelas saunas de massagem em Bangkok, matando a velha curiosidade à par das genitálias orientais. “Se oriente, rapaz, pela constelação do Cruzeiro do Sul”, ecoa a canção de Gilberto Gil nos meandros do reduto. Acendo um incenso com aroma de pequi. A boa música brasileira me ascende. Não podemos morrer, nenhum de nós dois pode, sem que eu assista ao Gilberto Gil cantando no palco, com malemolência baiana, talento e carisma. Ninguém garante. Ninguém sabe. Destino não se presume com meteorologia. Eu devia meter. Eu merecia uma daquelas massagens tailandesas no meu ego, mas, o prazer me remete a um certo grau de melancolia e culpa que não sei explicar. Não, eu não preciso de um divã. Eu quero mesmo é uma rede de frente para o mar. A previsão, portanto, é a seguinte: ainda hoje, no maior clima de descontração, tocarei uma partitura em sua homenagem, Mocinha da Tempo, allegro ma non tropo, se é que me entende. Vai chover na minha aorta, baby? O meu coração virou pedra, honey? Mel. Eu quero mel para adoçar a amargura. Algo que me transforme num homem mais palatável ao apetite insaciável do isolamento. Saudações aos homens viciados em solidão, pois, olhando de longe, parecem criaturas mais sensatas do que a maioria. Se dominasse as técnicas da autofagia, devorava a mim mesmo, indecifravelmente, com aquele saborzinho de poeira e rocha na língua. Imagine: desaparecer à mingua, num acesso de fome descontrolada, um indigesto e definitivo retro-canibalismo. Precisava agora mesmo de ver um filme de comédia, uma trama altruísta, quem sabe. Buñuel, não; Bergman, não; Lars von Trier, não; os irmãos Coen, não. Carregar minha mãe desmaiada nos braços foi um recurso não programado, porém, impreterível. Pesadíssimos 39 quilos de medo da cozinha até o quarto. Frágil como uma borboleta com câimbras nas asas, ela tombou à minha frente sobre o prato de comida. Senti um peso hercúleo nos ombros. Nada a ver com uma lesão no ciático. Foi apenas o baque midiático do tempo a me esbofetear a cara. No exato instante em que calculava recorrer à escrita de um novo texto que falasse do amor entre pais e filhos, ela tomou mais um dos incontáveis comprimidos, fez o sinal da cruz no peito, disse que preferia sopa para o jantar e recostou sobre o travesseiro. Saí para comprar legumes. Mais aturdido que um animal acuado.