A tragédia nos humaniza, nos iguala e nos une na dor

A tragédia nos humaniza, nos iguala e nos une na dor

Não dá pra acreditar. Hanna está morta. Dias amargos e infelizes adentrarão pela porta, cínicos, insolentes, a tocar tambores, famintos com facas nas mãos. Que fome é essa, companheiros? Quem chora os rios mais caudalosos: os olhos humanos que sofrem ou as pedras desumanas que prenderam Hanna por um dos tornozelos? Não culpo as rochas. Hanna tinha belos pés e um sorriso mais escandaloso que um pôr do sol na Chapada dos Veadeiros.

O tempo diz muito, mas, não é o senhor absoluto. A morte, essa sim, é quem põe as cartas na mesa. Hanna quis se refrescar, dar um mergulho e morreu afogada numa cachoeira em Alto Paraíso. Queria tanto matar a morte. Queria tanto escutar um tango, me embebedar, me enveredar na vastidão de um pesadelo com início, meio e fim. Afinal, quanto mais sonho, mais valente eu fico. Esse é o talento dos covardes: aquartelar-se na solidão dos lares.

Um turbilhão de água cristalina sugou-a com uma sede que eu nem lhes conto. Aconteceu no parque, na reserva ecológica. A vida se revela cruel ao revezar os percalços difíceis de se relevar. Que baixo astral. Que trocadilho infame. Não consigo sequer conter o riso nervoso, porém, admito, ele é puro desespero, asseguro-lhes, por favor, compreendam, não chorem comigo, não percam tempo, economizem as suas lágrimas para as próprias tragédias. Essa dor eu assumo, desgraçadamente, mesmo não sendo minha, mesmo não conhecendo Hanna da forma que vocês supõem que eu a conheça. Hanna não é alguém da família, uma ex-namorada ou o grande amor da minha vida. Hanna foi resgatada morta, deixou marido, dois filhos e um escritor aturdido que hora lhes escreve.

Lola, a cadelinha, parece presumir toda consternação, pois, lambe-me as pernas com uma disposição comovedora, acima da média. Lambidas cativantes ativam as endorfinas. Animalzinho com hábitos refinados. Esses bichinhos parecem adivinhar, eles são como gente, é o que se diz. Eu lhes digo que desejaria deixar de ser gente para ser a pedra de um rio e deixar que flutuassem tornozelos leitosos como os de Hanna. É assim que a neurose funciona e produz em mim os pensamentos mais descabidos.

Cabe ressaltar: as mortes acidentais e as violentas são as que mais matam a esperança. Queda. Tiro. Atropelamento. Alguém que se afoga. Um piano que cai do oitavo andar. Sinto uma dor calada na boca do estômago, como se ela vomitasse de mim os solos tristes de um violoncelo. Há poucas coisas mais aterradoras do que um violoncelo insultando o silêncio da noite. Sinto-me oprimido, esmagado como o transeunte desavisado, atingido na cabeça pelas claves de sol. Chove. Tinha que chover. Tinha que garoar justamente agora para completar tanta melancolia.

Eu não sabia: um experiente guia turístico do parque, um ex-médico que apanhou medo de sangue e de melodramas, explicou, com a voz embargada, com as rugas a serpentear ariscas pelo rosto, que todas as vezes que chovia forte lá no alto, na cabeceira do rio, ele sentia um imediato arrepio nas vísceras, pois, o volume de água aumentava tanto, mas, aumentava tanto que criava uma enxurrada exuberante, uma corredeira volumosa de velocidade estonteante, descomunal, que descia, rompia, dilacerava, lambia de forma voluptuosa as gretas pedregosas do vale, arrastando, com sonhos-de-dar-no-mar, os homens e os cavacos.

Enfio no sovaco um livro qualquer, por mera distração. Pode ser a bíblia, uma lista telefônica, o “Código da Vinci” que alguém me presenteou e que eu não vou ler, nem fodendo, podem acreditar. Não gosto dos mais vendidos. Na melhor das hipóteses, o livro servirá de adorno, de volume ou de muleta, para que eu caminhe compenetrado pelos meandros da casa, vazando amargura pelos desfiladeiros de mim mesmo, como se fosse uma enchente inesperada, uma tromba d’água rápida, cruel e irresistível.